Resenha simplificada do Filme "Danton: o processo da Revolução"
Comentários ao filme: “Danton: o processo da revolução”
1. Quem são esses homens que lidam com a revolução como se estivessem lidando com seus assuntos mais particulares? Quem são essas estranhas criaturas que lidam com o destino como se fosse manipulável? Como se a vontade estivesse acima do mundo? O filme Danton (Danton -1983) é uma produção polonesa (em co-produção internacional entre as companhias na França, Polônia e Alemanha Ocidental) dirigida pelo polonês por Andrzej Wajda, baseado no texto “O caso Danton” de Stanislawa Przybyszewska. O filme é estrelado por Gérard Depardieu no papel principal de Danton. Todos os partidários de Danton (com a exceção de Bourdon) são interpretados por atores franceses, enquanto os aliados de Robespierre são atores poloneses. Cada ator falava em sua própria língua e os dubladores traduziam para o francês. O filme teve um orçamento de 24 milhões de dólares (3 milhões provenientes do governo francês) e não recuperou o valor nas bilheterias. Muitos apontam sua ligação com o movimento solidariedade da Polônia (de Lech Walesa), entretanto, o diretor sempre negou tal versão.
O filme traça um paralelo entre o regime de terror após a Revolução Francesa e da situação na Polônia contemporânea, na qual o movimento Solidariedade, estava lutando contra a opressão do governo apoiado pelo regime soviético. Existem duas formas de ver o filme. Enquanto objeto sobre o passado e enquanto crítica ao momento presente daquele filme.
2. A primeira forma de ver o filme é observando suas referências ao período que o filme trata e as disputas que estavam presentes. O filme inicia na primavera (Março) de 1794, já estamos no segundo ano da república da convenção, portanto em pleno ápice do período dos acontecimentos reconhecidos com “Revolução Francesa”. Inicialmente devemos notar que a revolução francesa dura ao menos 10 anos e que até chegar ao caso Danton muitos acontecimentos importantes já ocorreram. Dentre eles pode-se citar: a) Assembléia Nacional Constituinte 1789; b) Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão 1789 e a Constituição de 1791 e a de 1793 (suspensa em virtude de fatos posteriores); c) Imposição de retorno do rei a Paris, o retirando de Versalhes a força pela população enfurecida 1789; d) Tentativa de fuga do rei 1791; e) Guerra com diversos reinos vizinhos 1791 em diante; f) Massacre do Campo de marte; g) A pátria em perigo Julho 1792 – Marselhesa; h) Golpe de 10 de Agosto de 1792 com deposição do rei e o início da república francesa; i) Batalha de Valmy – Setembro de 1792; j) Massacres de Setembro de 1792 (execução de prisioneiros) Danton chega inclusive a afirmar que cria o Tribunal revolucionário foi criado com objetivo de impedir os massacres; k) Girondinos no poder no início da república e a e assunção dos jacobinos. l) Terror na ordem do dia. O que é o Terror? Política “Sejamos terríveis para que o povo não tenha que ser.... momentos extremos requerem medidas extremas... traições... “”Declaração de Brunswick – general austríaco que prometeu invadir Paris e matar todos os que desrespeitaram o rei de maneira exemplar sem nenhuma piedade” (Que se imponha o terror para que o povo não tenha que se terrível!); m) Danton se afasta... Robespierre comanda a revolução.
Danton participa de quase todos os momentos da revolução mas nunca age diretamente, nunca está de corpo presente, em geral incita o povo e se afasta com medo de repressálias. A coragem corporal não parece ser o maior atributo de Danton. O filme culmina com a execução de Danton em 5 de Abril de 1794, e a fala de Robespierre, como início do fim é algo que realmente se confirmaria muito rápido com a seqüência dos acontecimentos.
3. Pode-se afirmar que na revolução ocorreram a invenção da democracia liberal moderna (a partir da declaração de direitos do homem e do cidadão e a assembléia constituinte) e a invenção da ditadura (com o estado de exceção em defesa da pátria). A cena em que a cidadã que trabalha na casa de Robespierre bate na mão de seu irmão a fim de ensiná-lo a declaração dos Direitos dos homens e do cidadão apresenta talvez um bom símbolo da contradição. O maior documento de liberdade que a humanidade já viu, decorado a força. Será a que a revolução se faz pela força? Ou ainda, será que a força pode fazer a revolução? Várias são as imagens do filme que demonstram a reviravolta de um sonho de justiça transformado na mais fria ditadura.
Durante a revolução pela primeira vez na História a liberdade de imprensa ganha força. Marat vira um dos grandes símbolos da revolução (e seu quadro aparece como referência). Por outro lado os jornais são censurados, as imprensas fechadas.
O Tribunal revolucionário é um outro exemplo. Foi criado para acabar com as execuções sumárias mas tornou-se o maior exemplo de execução sumária e julgamento disfarçado. As formalidades aos poucos foram sendo suprimidas. E o que um processo não é senão um conjunto enorme de “formalidades” – exclamava Danton.
Talvez o maior exemplo da revolução e de seus ideais seja a música Marselhesa. É um hino de liberdade que ecoa por séculos. Uma música de defesa da pátria que vira uma espécie de hino ao nada. A pátria e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Cantados como forma de emudecer os gritos de liberdade, igualdade e fraternidade.
As mulheres? Anne Lucile Laridon-Duplessis (Lucile Desmoulins) aparece apenas para chorar a morte seu marido, decretada pela testemunha de seu casamento, Robespierre. Dias após os acontecimentos do filme ela também terá como destino a guilhotina. A revolução acabou por devorar seus próprios filhos. O retrocesso na revolução apresenta o problema do medo e da violência numa revolução. Sem dúvida o medo e o poder podem gerar efeitos que nem mesmo os mais virtuosos dos homens conseguiriam agüentar.
4. Danton e Robespierre perfazem os respectivos papeis de Eros e a civilização. Eros que além da boemia apresenta uma revolução também do pensamento. Civilização que pretende com a virtude superar os efeitos da distorção do passado. Danton é amado pelo povo, Robespierre é admirado pela Convenção. Enquanto Danton é a encarnação do Eros, do desejo e da boemia, Robespierre é a encarnação da virtude, da honestidade e da sincera vontade revolucionária da civilização moderna.
Quando ambos se relacionam à revolução chega ao seu auge.
Quando a revolução escolhe a civilização e mata o Eros, o desastre é eminente.
A virtude não transforma o mundo sozinha.
A boemia muito menos.
Porém ambas unidas tem um poder fenomenal.
O problema é que não conseguem se relacionar. Robespierre talvez nunca tenha feito amor, segundo Danton. Danton talvez nunca tenha sido honesto, e aproveitou-se da desonestidade para enriquecer durante a revolução.
Realmente. Não existe unidade da revolução.
5. A Análise de Robert Darnton em O beijo de Lamourette apresenta, segundo o autor para o desespero da esquerda francesa, um Danton como algo que ele não era. Esse Danton do Eros pós 68 está longe de ser o Danton histórico. Os franceses da esquerda virão algo que o diretor jurava que nunca existiu.
Que uma coisa fique bem clara‖, disse ele ao Le Monde, ―Danton não é Lech Walesa e Robespierre não é Jaruzelski!‖ ―Se você quer encontrar analogias históricas, terá de procurá-las num período totalmente diverso‖, disse ao Le Matin. ―Aqueles dois anos do Solidariedade não foram uma revolução, ou, em todo caso, não da mesma natureza da Revolução Francesa.‖
O filme não representa o passado como uma tela “perfeita”, nem pretende criar uma narrativa adequada do passado. Darton ressalta:
Logo depois do início do filme, um garoto, o próprio retrato da inocência, fica de pé numa tina, nu, tentando recitar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto sua irmã mais velha lhe dá banho. Sempre que lhe faltam as palavras, ele estende a mão e ela lhe bate nos nós dos dedos. Mais do que lavar o menino, ela está lavando o seu cérebro para cair nas graças do distinto hóspede de seu pai, o Cidadão Robespierre. Logo a seguir, Robespierre dá ordens a alguns rufiões da polícia secreta, para que destruam a loja onde Camille Desmoulins estava imprimindo Le Vieux Cordelier, o jornal que popularizou as tentativas dos dantonistas em deter o Terror. Tendo se demorado sobre a dor estampada no rosto do menino, a câmera toma todos os detalhes da destruição dos prelos. Nenhum dos dois episódios ocorreu de fato – e, até onde se pode dizer, não ocorriam na peça de Przybyszewska. Mas o espectador polonês não precisa saber que são inventados por Wajda para vê-los como uma crítica ao controle sobre a liberdade de pensamento dentro do país. O terceiro episódio faz uma denúncia ainda mais clara do doutrinamento stalinista. Robespierre, envolto nos mantos de um César, está osando para seu retrato no estúdio de David. Ele se interrompe para repreender o promotor do Tribunal Revolucionário, que está tendo dificuldades para manipular o julgamento de Danton. Então ele nota uma tela gigantesca, onde David começou a pintar sua famosa versão do Juramento do Jeu de Paume, de 20 de junho de 1789. Entre o grupo de patriotas, Robespierre vê a cabeça recém-pintada de Fabre d‘Eglantine, que no momento está sendo julgado junto com Danton. ―Apague-a, ordena ele. ―Mas ele estava lá, objeta David. No entanto, Robespierre insiste, e assim Fabre desaparece como todas as vítimas da historiografia stalinista. Essa cena, porém, nunca aconteceu. Fabre não participou do Juramento do Jeu de Paume, pois não era deputado para os Estados-Gerais em 1789. Pelo visto, Wajda estava tão decidido a desmascarar a falsificação histórica dos stalinistas que se dispunha a falsificar pessoalmente.
Todo filme tem um pouco de invenção. Toda história também. De qualquer sorte criticar o filme faz parte da função do expectador que não se faz de ingênuo, mas ao mesmo tempo admira as mudanças com objetivos implícitos. Mudar o passado pode ser algo belo, se for um propósito artístico. E somente nesse sentido.
6. Difícil encontrar um sentido para a revolução.
Como nos parece estranho homens agirem como se fossem capazes de controlar o seu próprio mundo. Em tempos de uma política liquefeita pouco resta aos homens para mudar, ainda mais em termos políticos.
De qualquer forma a grande capacidade desse filme é questionar os limites da transformação. Uma transformação ainda em andamento. Em todos os seus aspectos.
Resenha de filme elaborada por Robert Darnton em seu livro “O beijo de Lamourette” da Ed. Cia das Letras.
CINEMA: DANTON E O DUPLO SENTIDO
No início do ano político, em setembro de 1983, quando os franceses voltaram de suas férias para encontrar o franco em baixa, uma escalada na corrida armamentista, uma crise no Oriente Médio e problemas em toda a frente do país, François Mitterrand convocou seus ministros no palácio Elysée e censurou-os pelo lamentável estado da história – não o rumo atual dos acontecimentos, mas a história que as crianças francesas estavam deixando de aprender na escola. O presidente sem dúvida tinha outras preocupações. Mas a crise que ocupava o primeiro lugar em sua agenda era a incapacidade do eleitorado em discernir os temas de seu passado. O que seria de uma coletividade de cidadãos que já não soubesse distinguir entre Louis XIII e Louis XIV, entre a Segunda e a Terceira República ou (e este parecia ser o grande problema) entre Robespierre e Danton? Mitterrand pode não ter mencionado a controvérsia suscitada pelo filme de Andrzej Wajda, mas provavelmente estava pensando em Danton. Ao assistir ao filme numa sessão privada antes de sua liberação em janeiro de 1983, não o aprovara. Seus aliados da esquerda socialista-comunista tinham ficado chocados com o filme, quando ele foi exibido na Assembléia Nacional. E, no semestre que se seguiu, ele deu aos intelectuais de esquerda uma oportunidade de lavrar tentos na imprensa popular, ao mostrarem sua capacidade de corrigir os registros históricos e sua determinação de retificar o currículo das escolas secundárias. [p. 57] Enquanto a oposição se regozijava – ―Obrigado, Monsieur Wajda‖, exultou Michel Poniatowski dos gaullistas –, a esquerda esbravejava de indignação. ―Que história que nada!‖, exclamou Pierre Joxe, líder dos deputados socialistas na Assembléia Nacional. E o pior era que aquilo podia ser tomado como verdade pelos escolares franceses. Vítimas de reformas curriculares que haviam lhes ―amputado a história‖, os alunos ―não poderão saber quem era Danton depois de vê-lo retratado dessa maneira‖. Louis Mermaz, o presidente socialista da assembléia, fez a mesma advertência: O ensino da história se tornou tão ruim [...] que os jovens de hoje não têm o conhecimento cronológico que os homens de minha geração tiveram a sorte de adquirir desde a escola primária. O filme é enganador. [...] Ele me faz querer lançar um apelo à retomada do ensino de história, coisa essencial para uma nação, para uma civilização. Tal veemência pode parecer enigmática para os americanos que assistiram a Danton. Sabemos que os franceses levam sua história a sério e que não se pode mexer em sua Revolução. Mas por que os socialistas desmentem uma versão da rixa entre Danton e Robespierre que coloca o primeiro numa luz favorável? O empenho de Danton em deter o Terror não pode ser visto como um prenúncio heróico da resistência ao stalinismo? Wajda não é um herói do Solidariedade? E não seria de se esperar que Danton de Wajda interessasse à esquerda moderada na França, aos paladinos do socialismo com face humana, ao partido que cobriu os painéis, durante a campanha de Mitterrand, com a figura de um punho estendendo uma rosa? Agora que Danton atravessou o oceano, parece oportuno abordar essas questões, pois elas nos introduzem no estranho mundo simbólico da esquerda européia, um mundo onde os intelectuais se enredaram nos mitos por eles criados e onde as linhas facilmente se cruzam, mesmo quando se estendem entre os bien pensants de Paris e Varsóvia na melhor das intenções possíveis. Danton surgiu das duas capitais, como uma história simultânea de duas cidades. Sobrevivendo à repressão contra o Solidariedade, Wajda dedicou seu filme seguinte a um tema histórico, situado a salvo em Paris, dois séculos antes que os zomos estampassem os últimos remanescentes da livre expressão nas ruas de Varsóvia. O filme começa com algumas cenas sinistras nas ruas de Paris, no final de 1793. Danton chega de sua propriedade rural para fazer
recuar o Terror que ele próprio ajudara a instaurar, depois da derrubada da monarquia em agosto de 1792. Logo se envolve numa luta desesperada sobre o curso [p. 52] da Revolução, que lança os moderados ou ―Indulgentes‖ contra a linha dura em torno de Robespierre, no Comitê de Salvação Pública. O filme explora a impotência de Danton em suspender o recurso à guilhotina e termina com sua própria execução em 5 de abril de 1794. Para que uma história tão complexa coubesse num filme, Wajda teve de cortar os fatos e reduzir seu texto. Ele trabalhou a partir de uma peça polonesa de Stanislawa Przybyszewska, que enaltecia Robespierre como paladino do povo e que servira como ponto de convergência para a esquerda polonesa nos anos 1930. Para a adaptação da peça para o cinema, Wajda recorreu a um roteirista francês, Jean-Claude Carrière, e o Ministério da Cultura da França contribuiu com 3 milhões para o orçamento de 24 milhões do filme. Os atores, eqüitativamente divididos entre poloneses e franceses, falavam suas línguas maternas, deixando aos dubladores a tarefa de criar a ilusão de um diálogo inteligível entre as duas partes. (Na versão exibida nos Estados Unidos, o filme é falado em francês e traz legendas em inglês, enquanto os lábios dos atores poloneses seguem o ritmo de seu próprio idioma.) Em virtude disso, Danton ficou intensamente polonês e intensamente francês. Também apareceu como uma produção de ar oficial do governo Mitterrand, como se os socialistas quisessem vincular a tradição revolucionária francesa ao movimento como que revolucionário do Solidariedade. A composição de ingredientes era perfeitamente talhada para misturar os significados e confundir os críticos. Wajda descarta rapidamente a versão mais simples do que poderia significar o filme para os poloneses. ―Não é uma alegoria‖, foi o que ele repetiu incessantemente nas entrevistas para a imprensa francesa. ―Que uma coisa fique bem clara‖, disse ele ao Le Monde, ―Danton não é Lech Walesa e Robespierre não é Jaruzelski!‖ ―Se você quer encontrar analogias históricas, terá de procurá-las num período totalmente diverso‖, disse ao Le Matin. ―Aqueles dois anos do Solidariedade não foram uma revolução, ou, em todo caso, não da mesma natureza da Revolução Francesa.‖ É verdade que é possível imaginar paralelos entre os dois pares de rivais políticos. A meticulosidade pessoal e o inflexível dogmatismo de Robespierre fazem lembrar a rigidez empertigada do general polonês, e a sociabilidade mundana de Danton sugere a conduta popular do herói dos estaleiros de Gdansk. Mas Wajda não permite que sua história se reduza a uma fórmula simples – o apparatchik versus o homem do povo – e apresenta inúmeros indícios incriminadores contra Danton. Se Gérard Depardieu estivesse encenando uma defesa de Walesa, seria tolo insistir sobre a corrupção de Danton no exato momento em que o [p. 53] governo polonês estava tentando denegrir a reputação de Walesa, acusando-o de embolsar fundos do Solidariedade. Mas permanece o fato de que Danton e Robespierre encarnam dois tipos de revolução e que o filme inclina a balança para o lado de Danton. ―Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental‖, declarou Wajda ao Le Matin. ―A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje.‖ O vigoroso desempenho de Depardieu faz de Danton a figura mais simpática e dominante, mas sua insistência sobre o gosto de Danton pelos prazeres pode ser vista como uma decadência burguesa. Quando vai jantar com Robespierre para discutir suas diferenças, ele se embebeda de uma maneira piegas. Sua incapacidade de empreender uma ação decisiva contra o Reinado do Terror, na crise de março e abril de 1794, pode inclusive insinuar o malogro do Ocidente em salvar o Solidariedade em 1981. Contudo, o filme é ambíguo demais para oferecer uma moral definida para o presente. Nem dá para avaliar o quanto Wajda se pôs ao lado do dantonismo, porque não se têm à disposição os textos do roteiro e da peça polonesa original para compará-los. Mesmo assim, é possível indicar os pontos em que o filme se afastou dos registros históricos. Três deles provavelmente se destacariam com clareza para um público polonês. Logo depois do início do filme, um garoto, o próprio retrato da inocência, fica de pé
numa tina, nu, tentando recitar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto sua irmã mais velha lhe dá banho. Sempre que lhe faltam as palavras, ele estende a mão e ela lhe bate nos nós dos dedos. Mais do que lavar o menino, ela está lavando o seu cérebro para cair nas graças do distinto hóspede de seu pai, o Cidadão Robespierre. Logo a seguir, Robespierre dá ordens a alguns rufiões da polícia secreta, para que destruam a loja onde Camille Desmoulins estava imprimindo Le Vieux Cordelier, o jornal que popularizou as tentativas dos dantonistas em deter o Terror. Tendo se demorado sobre a dor estampada no rosto do menino, a câmera toma todos os detalhes da destruição dos prelos. Nenhum dos dois episódios ocorreu de fato – e, até onde se pode dizer, não ocorriam na peça de Przybyszewska. Mas o espectador polonês não precisa saber que são inventados por Wajda para vê-los como uma crítica ao controle sobre a liberdade de pensamento dentro do país. O terceiro episódio faz uma denúncia ainda mais clara do doutrinamento stalinista. Robespierre, envolto nos mantos de um César, está [p. 54] posando para seu retrato no estúdio de David. Ele se interrompe para repreender o promotor do Tribunal Revolucionário, que está tendo dificuldades para manipular o julgamento de Danton. Então ele nota uma tela gigantesca, onde David começou a pintar sua famosa versão do Juramento do Jeu de Paume, de 20 de junho de 1789. Entre o grupo de patriotas, Robespierre vê a cabeça recém-pintada de Fabre d‘Eglantine, que no momento está sendo julgado junto com Danton. ―Apague-a‖, ordena ele. ―Mas ele estava lá‖, objeta David. No entanto, Robespierre insiste, e assim Fabre desaparece como todas as vítimas da historiografia stalinista. Essa cena, porém, nunca aconteceu. Fabre não participou do Juramento do Jeu de Paume, pois não era deputado para os Estados-Gerais em 1789. Pelo visto, Wajda estava tão decidido a desmascarar a falsificação histórica dos stalinistas que se dispunha a falsificar pessoalmente. Não se poderia esperar que os espectadores poloneses de Wajda conhecessem muito bem a biografia de um personagem obscuro como Fabre d‘Eglantine, mas na certa podia-se contar que tivessem concepções sólidas sobre a história, pois a consciência nacional na Polônia é apaixonadamente histórica. Desde os primeiros momentos de sua existência, o Solidariedade tentou libertar tanto o passado quanto o presente. Tendo sido criados na ideologia histórica utilizada pelo regime para sua autolegitimação – principalmente a linha que liga o robespierrismo ao bolchevismo –, os operários dos estaleiros de Gdansk reivindicavam o direito de despir os dogmas de sua história e de confrontar os fatos, em especial os incômodos fatos que se estendem do massacre soviético dos oficiais poloneses em Katyn, em 1940, às partilhas da Polônia no século XVIII. Wajda montou uma produção de Danton nos estaleiros em 1981. Seus filmes anteriores mostravam que ele compartilhava a paixão de seus conterrâneos pelo passado. Cenário após a batalha (1970) ligava um levante popular a uma peça-dentro-de-uma peça, comemorando a vitória polonesa sobre os cavaleiros teutônicos na Batalha de Tannenberg, em 1410, e O homem de mármore (1977) relatava a tentativa de um cineasta em recuperar a verdadeira história de um herói proletário entre o lixo da propaganda stalinista. Um público familiarizado com esse tema poderia ver uma mensagem semelhante na dissecação de Wajda da mitologia robespierrista. É claro que ninguém tem como saber o que vêem os poloneses em Danton, a não ser que se entrevistasse um grande número deles a uma distância segura da polícia. Mas parece provável que muitos episódios do filme assumem um significado especial nas condições que se seguiram [p. 55] à proscrição do Solidariedade. Os parisienses nas filas de pão resmungando contra o Comitê de Salvação Pública podiam estar maldizendo a ditadura militar em Varsóvia, Danton lançando desafios no Tribunal Revolucionário podia ser Walesa nos estaleiros de Gdansk: ―O povo tem apenas um inimigo: o governo‖. A justificativa de Robespierre para o Terror – a necessidade da tirania a serviço da democracia – podia ser a de Jaruzelski. Como informou Bernard Guetta, o ex-correspondente do Le Monde em Varsóvia, depois de ter visto o filme: Uma centena de coisas nele têm uma ressonância que os poloneses, ou quem quer que tenha vivido entre eles nos últimos anos, não deixariam de captar.
Captar essa ressonância não é uma questão de apontar alegorias ou descobrir um código secreto. Os poloneses aprenderam a conviver com significados ocultos e protestos ambíguos. O detestadíssimo noticiário polonês das seis horas ensinou-os a reagir de maneira experiente às imagens nas telas, e pode-se confiar que eles notam os pesos dados às imagens em Danton. Elas constituem uma denúncia arrasadora da opressão do governo. Embora o filme conceda alguns momentos de triunfo a Robespierre na tribuna, o trabalho de câmera desfaz o efeito de suas palavras. Enquanto ele intimida os deputados da Convenção com a linha oficial do Terror e da Virtude, a tela é ocupada por um close-up de seus requintados sapatos. Ele chega aos momentos de clímax no discurso erguendo-se na ponta dos pés, mais parecendo um mestre de danças do que um protetor do povo, em contraste com Danton, que ruge para a multidão na sala do tribunal como um leão enjaulado. Se Robespierre chega a marcar alguns pontos nos debates, eles são anulados no final pela guilhotina. A lâmina desce sobre a garganta de Danton com uma inexorabilidade revoltante. O sangue jorra na palha sob o cadafalso. O carrasco segura a cabeça cortada diante da multidão, e a câmera se detém nela numa seqüência de tomadas excessivamente expostas, tiradas de baixo e voltadas para o sol, que dão ao espectador uma sensação de vertigem e náusea. Então a cena passa para Robespierre, suando como um louco na cama, enquanto o menino, que finalmente aprendeu seu catecismo, recita a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. À medida que ele vai papagueando as palavras, sua voz é afogada pela música dissonante de fundo, e com essa nota estridente termina o filme. Apesar da pequena publicidade e poucas críticas, Danton tem [p. 56] sido exibido para salas lotadas em toda a Polônia. Só se pode arriscar palpites quanto à sua acolhida, mas é difícil imaginar que a platéia deixe a sala sem um sentimento de ódio renovado contra o governo polonês. Na França, tudo parecia preparado para fazer de Danton um grande sucesso. Wajda era uma celebridade, o Solidariedade tinha conquistado o coração do público, e o governo socialista recém-eleito estava ansioso em apresentar o filme como sua abertura para o bicentenário da Revolução Francesa em 1989. Mas Danton gerou um escândalo, principalmente na esquerda, onde a difícil aliança entre socialistas e comunistas deixa algumas incertezas sobre quem há de representar a tradição revolucionária. Os comunistas tentaram assestar a maior denúncia contra o filme: ―É contra-revolucionário‖, escreveu um crítico no L‟Humanité. Para não ficarem para trás, os socialistas responderam na mesma moeda. ―Desfigura tudo o que há de mais belo [na Revolução]‖, declarou Philippe Boucher ao Le Monde. E Pierre Joxe acrescentou: ―A história [de Wajda] não é a nossa‖. A ―nossa‖ história era a da esquerda, uma grande tradição desenvolvida por uma sucessão de grandes historiadores – Michelet, Jaurès, Mathiez, Lefebvre – e ensinada a muitas gerações de escolares, desde a Vitória da école laïque no século XIX.1 Para fazer de seus alunos cidadãos, os professores da velha escola inculcavam em seus cérebros uma quantidade enorme de fatos. As crianças recebiam uma primeira apresentação da cronologia na escola primária, freqüentemente utilizando os pequenos manuais da coleção ―Petit Lavisse‖, que fornecia as obras dos grandes historiadores em porções facilmente digeríveis. Depois, no lycée, dedicavam-se a estudos sistemáticos. No final da cinquième, uma turma composta basicamente de alunos na faixa dos treze anos, eles tinham passado pelas invasões bárbaras. Entravam na Idade ―Moderna‖, do século XVI ao século XVIII, na troisième. Então, na seconde, aos dezesseis anos, passavam um ano inteiro estudando a Revolução e o império – e muitas vezes voltavam a eles na terminale (aos dezoito anos). A Revolução servia como ponto central de toda a seqüência. Quando os estudantes saíam para enfrentar o baccalauréat ou os boches, sabiam o que tinha ocorrido entre 1789 e 1799, e principalmente na crise máxima de 1793-94. Embora os manuais variassem, a mensagem permanecia a mesma: no ano do Terror, uma França republicana tinha se erguido contra as forças conjugadas de uma Europa feudal e as derrotara. [p. 57]
Danton ocupava um lugar importante nessa visão – não o Danton dos Massacres de Setembro, mas o Danton de ―Il nous faut de l‟audace‖ (―Precisamos de ousadia‖) que ainda desafia as forças estrangeiras a invadirem a França do alto de um pedestal no Boulevard Saint-Germain. Ele foi posto no pedestal por Alphonse Aulard, o primeiro historiador a ocupar a cátedra da Revolução Francesa, criada em 1891 na Universidade de Paris. O aluno e sucessor de Aulard, Albert Mathiez, voltou-se contra o mestre e tentou tirar Danton de suas alturas provando que ele tinha se vendido à contra-revolução. Em lugar dele, Mathiez alçou Robespierre, o estrategista ideológico que formou uma aliança com o populacho para, segundo Mathiez, obrigar a França a seguir o caminho da revolução social. O Robespierre de Mathiez cabia perfeitamente no leninismo e na idéia de uma ditadura do proletariado, e os sucessores de Mathiez, George Lefebvre e Albert Soboul, um marxista e o outro marxista-comunista, garantiram que Robespierre mantivesse sua posição naquilo que logo se cristalizou numa versão ortodoxa da Revolução Francesa e das revoluções em geral, as quais a partir daí supostamente teriam de seguir um curso que levava da guerra de classes ao Terror e ao socialismo, a menos que fossem desviadas por uma reação termidoriana como a que se seguiu à derrubada de Robespierre em julho de 1794. Essa ortodoxia ainda dá os moldes para a história ensinada na Europa oriental: daí a ousadia da reabilitação de Danton a que procedeu Wajda. Mas ela nunca eliminou outras interpretações concorrentes na França. Hoje em dia, a maioria dos historiadores franceses provavelmente admitiria que as finanças de Danton não resistem a um exame detalhado. Em 1789, como advogado, ele não estava propriamente numa situação próspera, atolado em dívidas de pelo menos 43 mil libras francesas. Em 1791, ele pagou seus credores e comprou uma herdade no valor de 80 mil libras francesas, sem nenhuma melhora sensível na prática de sua profissão nem a aquisição de qualquer outra fonte legítima de rendimentos. Provavelmente tirou dinheiro da corte. Mas um político pode rechear sua bolsa sem trair seu país, e Danton certamente liderou a resistência aos exércitos invasores, após a derrubada da monarquia em 10 de agosto de 1792. Sua estátua ainda continua na Place Danton como a encarnação do patriotismo. Podia ser o Homem de Ferro de Wajda. Robespierre não ocupa um lugar comparável na imaginação de seus conterrâneos, embora ainda domine a historiografia francesa. ―Apesar do considerável papel histórico desempenhado por Robespierre, ele não conquistou grande aceitação como personalidade na [p. 58] França‖, explicou Louis Mermaz ao Le Monde. ―E de se notar que não existe nenhuma Rue Robespierre em Paris.‖ Como que em resposta, Jean Marcenac apresentou a posição comunista aos leitores do L‟Humanité: Eu moro em Saint-Denis, a única cidade na França onde há uma estátua de Robespierre. [...] Vou comprar três rosas vermelhas e depô-las na base de seu busto na praça Robespierre. Faz parte de minha conduta. Esta sempre foi minha conduta. Wajda perdeu o rumo. O intenso simbolismo dessas declarações mostra até que ponto a Revolução guarda sua força mítica na França. Controlar o mito é exercer poder político, é marcar posição como o autêntico representante da esquerda. A Revolução assentou as categorias básicas da política francesa, começando pela distinção entre esquerda e direita, que deriva da distribuição dos lugares na Assembléia Constituinte. Os políticos que hoje sentam na Assembléia Nacional sabem que podem aparar as objeções manipulando as categorias. Como Robespierre, eles tentam falar em nome do povo soberano e contornar seus inimigos à esquerda. A ala esquerda dos socialistas parecia vulnerável quando Danton estreou em janeiro de 1983. O governo tinha mudado de rumo e adotara políticas econômicas mais próximas às de Raymond Barre ou Margaret Thatcher do que do programa radical com que Mitterrand se elegera. Sua contemporização cheirava a dantonismo, e os comunistas começaram a criticá-la da esquerda, tal como fizera Robespierre ao atacar os moderados na Convenção, alinhando-se com as reivindicações populares dos sans-culottes. Os socialistas precisavam provar sua pureza
ideológica. Assim, correram em defesa da visão ortodoxa da Revolução Francesa. Concorriam entre si na disputa para denunciar as heresias em Danton. Foi um espetáculo extraordinário, os partidários convictos dissertando sobre história uns para os outros como se fossem professores dando aula. Cada ponto lavrado contra Wajda podia ser contabilizado como um avanço rumo à vitória contra a oposição e como uma demonstração da maior fidelidade pessoal à verdadeira tradição revolucionária. Todos podiam participar desse jogo – isto é, todos que tivessem uma boa educação ao velho estilo. Wajda foi acusado de ter dado ao Terror uma aparência de gratuidade ao eliminar todas as referências ao seu contexto: a guerra civil na Vendéia, as revoltas federalistas nas províncias, as intrigas contra-revolucionárias em Paris e a invasão prestes a transpor as fronteiras. Wajda tinha ignorado a campanha de Robespierre contra a extrema-esquerda liderada por Jacques Renée [p. 59] Hébert, assim transformando em tolice a oposição de esquerda a Robespierre no Comitê de Salvação Pública e obscurecendo as razões políticas do golpe de Robespierre contra os dantonistas: a necessidade de conservar o apoio dos sans-culottes e impedir que a Revolução desse uma guinada para a direita, após o expurgo da esquerda hebertista. Wajda tinha chegado a cortar os próprios sans-culottes. O populacho mal aparece no filme, embora a Revolução Francesa tivesse sido um levante das massas, e não um duelo parlamentar entre alguns oradores burgueses. (Na verdade, Wajda tinha planejado filmar algumas cenas de multidões em Cracóvia, mas o governo polonês, que tinha suas próprias multidões para apoquentá-lo, não o autorizou.) Finalmente, os críticos esquadrinharam o filme atrás de anacronismos. Saint-Just usava um brinco e ficava cabriolando para cima e para baixo como um hippie moderno, ao invés do sinistro ―Anjo da Morte‖ da história ortodoxa. Ele atirou o chapéu no fogo no quarto de Robespierre, ao passo que esse acesso de raiva tinha acontecido de fato durante um debate dramático no Comitê de Salvação Pública. Robespierre e Danton eram chamados de Maxime e Georges pelos seus adeptos, enquanto na verdade os revolucionários raramente usavam os primeiros nomes, mesmo depois de terem adotado o tu democrático. Esses detalhes chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heróico do que as figuras dos livros de história. Billaud-Varenne estava barbudo demais, Desmoulins fraco demais, Danton bêbado demais. O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o engagement. Teórico que virou homem de ação, ele estabeleceu as linhas do partido e elaborou uma estratégia no interesse das massas. Os líderes socialistas se consideram intelectuais desse feitio. Mitterrand gosta de ser visto como um homem de letras e torna público que tem à cabeceira um exemplar da história da Revolução de Michelet. Numa de suas primeiras nomeações importantes, ele indicou Claude Manceron, o historiador da Revolução, como seu attachê culturel encarregado da missão especial de preparar uma comemoração espetacular do bicentenário, que também pudesse celebrar a vitória dos socialistas na eleição presidencial de 1988. Max Gallo, o porta-voz do governo, é um ex-professor de história que escreveu uma biografia de Robespierre na linha de um Mathiez com pitadas de Freud. [p. 60] Estes e muitos outros da cúpula do Partido Socialista acham natural que os intelectuais exerçam o poder. Na verdade, eles crêem que o poder é intelectual, pelo menos em parte, como argumentou Michel Foucault em vários livros de influência.2 Assim, Jack Lang, ex-diretor teatral, agora ministro da Cultura, que esteve por trás do patrocínio francês de Danton, decidiu que uma maneira de enfrentar a recessão seria convocar uma reunião gigantesca de intelectuais em Paris. Eles discursaram uns para os outros durante dois dias, neste último inverno, e se dissolveram na esperança de terem erguido o moral do país, senão mesmo seu PNB. Mas os ânimos esmoreceram, e no verão o governo lançou um outro apelo geral pelo apoio da esquerda intelectual. Mesmo assim, as coisas não melhoraram, e no último congresso do Partido um
delegado se pôs de pé, apontou com o dedo para os líderes e citou Robespierre quanto às cabeças que precisavam rolar. Esse tipo de comentário faz sentido numa cultura política que ainda traz a marca de 1794. Assim, o debate sobre Danton, embora parecesse girar sobre questões fatuais que podiam ser decididas desde as cartilhas da Terceira República, na verdade dizia respeito ao poder simbólico. Ao apelarem aos fatos, porém, os políticos se expuseram a algumas dificuldades levantadas por seus companheiros de percurso da intelectualidade. As cartilhas estavam ultrapassadas. Pior, a própria fatualidade fora relegada pela vanguarda à sucata das idéias antiquadas, como o liberalismo e o positivismo. Foucault e uma legião de críticos literários tinham dissolvido os fatos em ―discurso‖, e os historiadores mais na moda, isto é, os identificados com a escola dos Annales e sediados na École des Hautes Études en Sciences Sociales, tinham dado as costas para a política e os acontecimentos, indo estudar as estruturas e mentalités. Muito antes da estréia de Danton, a cisão entre a velha e a nova história fora agudizada por uma briga entre dois dos principais historiadores da Revolução, Albert Soboul e François Furet. Soboul, comunista e professor na Sorbonne, pertencia à linha direta de descendência de Mathiez. Furet, ex-comunista e importante membro dos Annales na École des Hautes Études, atacou toda a tradição de Mathiez a Lefebvre como um mito perpetrado em favor do stalinismo. A polêmica abalou a Rive Gauche durante vários anos da década de 1970. Mas ela se acalmara na época em que os socialistas e comunistas se puseram em cooperação para eleger Mitterrand. No outono de 1982, Soboul morreu. Seu funeral foi uma coisa triste, uma grave massa comunista com rosas vermelhas e trajes negros no Mur des Fédérés, [p. 61] o território mais sagrado da esquerda no Cimetière du Père-Lachaise. Parecia marcar o fim de uma visão da Revolução que inspirara os franceses por mais de cem anos. Se há agora alguma outra visão predominante, é a que deriva da École des Hautes Études. Furet, atual presidente da École, tem se dedicado a repensar a Revolução como uma luta pelo controle do discurso político.3 Num dos poucos artigos favoráveis sobre Danton, ele elogiou Wajda por fazer uma punção do mito do robespierrismo e expor seus vínculos com o stalinismo. Ao mesmo tempo, enquanto os profissionais faziam suas contagens de pontos, os alunos tinham de fazer seus trabalhos de casa e enfrentar os exames do baccalauréat. E isso sem suarem sobre os textos que haviam deturpado as lembranças de seus pais, porque a história tinha sumido do currículo. Depois de uma série arrasadora de reformas, ela fora engolida pelas sciences humaines, modernizadas pela existência. As crianças francesas já não atravessam cronologicamente o passado completo do país. Elas estudam temas como a sociedade urbana, campesinatos comparados e sistemas ecológicos. Boas no discurso e fraquinhas nos fatos, não sabem dizer a diferença entre Robespierre e Danton. Assim, ao discutirem Danton, os políticos ficaram presos num duplo nó. Apelaram para um tipo de história antiquada que já não parecia sustentável para a sua vanguarda intelectual e não mais existia para seus filhos ou netos. Eles próprios tinham criado o problema, pois haviam encarregado um herói da esquerda, um intelectual do mais puro anti-stalinismo, para celebrar a sua Revolução, e ele a denegrira. Aonde o mundo iria parar? Os socialistas só podiam abanar a cabeça e discorrer entre si sobre as heresias de Wajda, sem se darem conta de que sua indignação mostrava o quanto se mantinham prisioneiros de sua própria mitologia. Em busca de uma saída para o dilema, eles tomaram o rumo previsível: uma outra reforma do ensino. Um ―Estado-Geral‖ de historiadores já se reuniu e propôs novas mudanças curriculares. Revigorado por suas leituras de Michelet, o presidente da República quer que a história ocupe o centro do novo sistema – uma história com os fatos bem direitinhos e os heróis encaixados nas categorias certas. No entanto, resta um problema: como endireitar os fatos. Tendo se apegado de maneira tão convincente à velha ortodoxia e sofrido tanto com as últimas séries de revisionismo, eles podem resistir a uma nova modernização. Mas uma coisa parece clara no debate sobre Danton: os fatos não falam por si sós. O filme poderia ser visto de maneiras completamente [p. 62]
diferentes. Não foi o mesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentido sugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significação da Revolução Francesa nunca se esgotará. O debate pode parecer uma inofensiva luta de sombras, mas ainda assim há vida nas sombras. Os fantasmas de Robespierre e Danton continuam a assombrar a esquerda européia, e talvez todos nós tenhamos de nos entender com o terror entre essas datas simbólicas, 1984 e 1989.