segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Senso Comum e Saber Científico

Senso Comum e Saber Científico


Os homens desenvolveram durante sua existência várias formas de conhecer o mundo. Essas formas podem ser divididas em dois grandes campos: os saberes espontâneos e os saberes racionais.







Saberes espontâneos à A base do saber espontâneo é a intuição (percepção imediata sem necessidade de intervenção do raciocínio). Os saberes espontâneos são frutos da experiência vivida no cotidiano. As pessoas desenvolvem tal conhecimento para resolver questões corriqueiras do cotidiano.
Ex. Sol gira ao redor da Terra! Para alguém que, por exemplo, saía na mata para caçar não há relevância saber se o sol gira em torno da Terra ou se a Terra gira em torno de si mesma. Basta saber que o sol ilumina a Terra em determinado período do dia. Isso porque, para a atividade imediata da caça, basta desenvolver o conhecimento sobre a posição do sol no firmamento. Tal conhecimento se desenvolve sem a intervenção do raciocínio.
Os saberes espontâneos são baseados na observação, na vivência pessoal e também na herança cultural. A transmissão de conhecimentos através da cultura pode fundar o “Senso Comum”. Tal perspectiva alude a questão da tradição como elo de transmissão de conhecimentos espontâneos. Os conhecimentos espontÂneos estão presentes em várias áreas da vida humana.
Agricultura à Qual é a melhor época para plantar? Os agricultores desenvolvem tal conhecimento de forma espontânea.
Saúde à Remédios caseiros da avó. Até mesmo certas crendices como tomar leite com manga causa dor de barriga, ou usar sal ou pó de café para cicatrizar machucados.
Imaginário à Em especial as superstições, como: 13 é um número de azar ou passar em baixo de uma escada dá azar.  
Mas em áreas da vida que parecem por excelência racionais existem saberes espontâneos.
História à Impressão de que no tempo dos avós era mais fácil ou mais difícil de viver; divisão da história da humanidade em quatro (Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea); cronologia linear e progressiva (primeiro é necessário conhecer o passado mais distante para depois conhecer o presente).  
Direito à Certas práticas são totalmente proibidas, como casamentos consangüíneos (sabe-se que existem sociedades que estimulam tal prática); a forma com que se criam preconceitos sobre litigantes de um processo (Ex. Vara trabalhista, caso em que  empregada doméstica reclama direitos. Há um preconceito sobre quem está certo e quem está errado)
Além disso, o saber espontâneo utiliza-se do chamado discurso competente para se difundir. Apenas pessoas autorizadas podem emitir opiniões sobre determinada questão. É o chamado uso da autoridade.
Uso da Autoridade – as principais instituições que garantem o uso da autoridade são: Igreja, Escola e Família. Argumento de autoridade está ligado ao uso da autoridade para transmitir a experiência da tradição a fim de conquistar obediência.
A História, por exemplo, é assunto de um profissional especializado (historiador) ou de um professor de História, ou, em última hipótese, de pessoas com idade avançada.  Assim como o Direito é assunto de jurista (juiz, advogado, promotor, etc.) e não de todos os cidadãos.

Saber racional à O saber racional é inaugurado pela Filosofia antiga. Sua origem nos gregos. Alguns autores situam o surgimento de alguns conhecimentos racionais no período helenístico, como é o caso da História, com  Heródoto, a partir de  Lendas, poemas e mitos datados de aproximadamente V A.C. Bem como a Medicina, com Hipócrates, ou o Direito com Sólon.  
A grande contribuição da Filosofia grega foi o desenvolvimento do saber especulativo, baseado no raciocínio lógico. (EX. Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Portanto Sócrates é mortal). Tal conhecimento foi a base para o que mais tarde se convencionou como desenvolvimento da Ciência moderna.
A Idade Média, apesar de desenvolver a filosofia de forma específica, não se pautou no desenvolvimento do saber racional, antes na especulação filosófica, principalmente voltada para a religião.
O saber racional ganha forma com as bases de dois pensadores do início da modernidade, que apesar de suas contradições e discordâncias formam o elo central do conhecimento racional atual, são eles René Descartes e Francis Bacon.
René Descartes (1596-1650), filósofo francês, estruturou o seu pensamento na chamada dúvida hiperbólica. Duvidando de todos conhecimentos oferecidos pelo sentido, chegou a conclusão que não poderia duvidar apenas de uma coisa, de que estava duvidando. Criou o aforismo “Penso, logo existo!” e assim fundou a tradição de construir o conhecimento a partir do que, em sua opinião, havia de mais seguro no homem: a razão.
Francis Bacon (1561-1623), filósofo inglês, desenvolveu a experimentação empírica. Tal perspectiva era pautada na observação racional da natureza, a qual poderia ser testada através do uso da razão. Portanto, para Bacon, o conhecimento empírico, ou seja, aquele baseado na experiência, podia buscar conhecer as coisas na realidade através do raciocínio lógico. Assim, explicava-se a realidade (observação) e buscava-se provar (experimentação) que o conhecimento produzia poderia se repetir com sucesso.
Pode-se inclusive afirmar que na modernidade ocorrem três fenômenos importantes: desencantamento do mundo; especialização; e a previsibilidade.
No século XVIII e XIX a Ciência passa a dominar o âmbito do conhecimento racional e demonstrar que o homem pode alcançar realizações nunca dantes vistas. Nomes Newton, que ao observar maças caindo cria a lei da gravidade, demonstra que o mundo não é mais um mistério (desencantamento do mundo) e que existe uma explicação lógica e previsível (previsibilidade) para o fenômeno. Além disso, tal fenômeno precisa ser estudado por pessoas especializadas.
O século XVIII vai ser marcado pelo século das luzes, os filósofos desenvolvem suas teorias que fulminaram na revolução da ciência, A revolução industrial. Ciência e Tecnologia triunfam no fim de século XVIII e início de XIX. O desenvolvimento de novas máquinas, novos produtos e novas tecnologias invertem questões importantes na vida cotidiana. Como o caso da alimentação. Revolução tecnológica na agricultura trouxe novas técnicas e novos instrumentos (arado, adubo, métodos de irrigação) Diminuindo drasticamente a questão da fome, o que foi um grande problema na Idade Média.  O desenvolvimento dos meios de transporte deu-se graças à ciência. A Máquina a Vapor, o Telegráfo, os remédios, vacinas, descoberta de bactérias e bacilos, entre outros fundaram uma nova forma de viver e se relacionar com o mundo.
O Século XIX será o Século do Otimismo.
Nesse contexto de desenvolvimento das ciências naturais, tudo que era científico resultava em desenvolvimento e evolução, por isso o estudo dos homens precisava desenvolver-se de forma similar.

Texto complementar


LAVILLE, Christian; DIONE, Jean. A construção do saber. (trad. Lana Mara Siman) Porto Alegre: Artmed; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. p.

O Nascimento do Saber Científico

Apesar de todos os nossos conhecimentos, concordemos que o mundo não é simples, e não é fácil viver nele. Imaginemos, então, o homem da Pré-História lutando com os elementos, confrontado com as forças desta natureza hostil que deve dominar para viver, para sobreviver... Tomemos o exemplo do fogo: um dia, após uma tempestade, o homem pré-histórico descobre que um raio queimou o mato; que um animal, nele preso, cozinhou e ficou delicioso; e que o fogo dá, além disso, o calor. Que maravilha é o fogo! Mas o que é o fogo? Como produzi-lo, conservá-lo, transportá-lo? Para sobreviver e facilitar sua existência, o ser humano confrontou-se permanentemente com a necessidade de dispor do saber, inclusive de construí-lo por si só. Ele o fez de diversas maneiras antes de chegar ao que hoje é julgado como o mais eficaz: a pesquisa científica. Os antigos meios de conhecer, entretanto, não desapareceram e ainda coexistem com o método científico.

OS SABERES ESPONTÂNEOS

O homem pré-histórico elaborava seu saber a partir de sua experiência e de suas observações pessoais. Quando constatou que o choque de dois sílices, ou da rápida fricção de duas hastes secas, podia provocar uma faísca ou uma pequena chama capaz de queimar folhas secas, havia construído um novo saber: como acender o fogo. Esse saber podia ser reutilizado para facilitar sua vida. Pois aqui está o objetivo principal da pesquisa do saber: conhecer o funcionamento das coisas, para melhor controlá-las, e fazer previsões melhores a partir daí. Inúmeros conhecimentos são assim adquiridos a partir da experiência pessoal. A criança que se queima ao tocar o fogão aceso, aprende que é quente. Se o toca uma segunda vez, depois uma terceira, constata que é sempre quente. Daí infere uma generalização: o fogão é quente, queima! E uma conseqüência para seus comportamentos futuros: o fogão, é melhor não tocá-lo.

A intuição

Um saber desse modo construído é aceito assim que uma primeira compreensão vem à mente. Assim, da observação que o Sol nasce todos os dias de um lado da Terra e se põe do outro, o homem pensou, por muito tempo, que o Sol girava em tomo da Terra. Essa compreensão do fenômeno pareceu satisfatória durante séculos, sem mais provas do que a simples observação. Em nossa linguagem de hoje, chamam-se tais explicações espontâneas de "senso comum", às vezes de "simples bom-senso". Ora, o senso comum é, com freqüência, enganador. Acreditar que o Sol gira em tomo da Terra é uma ilustração patente disso. O bom-senso faz-nos dizer muitas outras desse gênero. Quem, por exemplo, não ouviu a declaração de que os diplomados são "desempregados instruídos", ao passo que a taxa de desemprego é inversamente proporcional ao nível de escolaridade; ou que os segurados sociais "são preguiçosos", a despeito da consideração das condições reais do emprego; ou que as mulheres são menos capazes de raciocinar matematicamente que os homens, enquanto que, feitas as verificações, não é nada disso. Poder-se-ia multiplicar os exemplos dessas compreensões rápidas vindas do senso comum, ou seja, dos saberes originários de observações imediatas e sumárias da realidade. O senso comum não deixa de produzir saberes que, como os demais, servem para a compreensão de nosso mundo e de nossa sociedade, e para nela viver com o auxílio de explicações simples e cômodas. Mas deve-se desconfiar dessas explicações, uma vez que podem ser um obstáculo à construção do saber adequado, pois seu caráter aparente de evidência reduz a vontade de verificá-lo. E, aliás, provavelmente o que lhes permite, muitas vezes, serem aceitas apesar de suas lacunas. Desse modo, em nossa sociedade, não se aceitam igualmente os ditados "Diga-me com quem andas e te direi quem és" e "Os opostos se atraem", ou até "Tal pai, tal filho" e "Pai avarento, filho pródigo", mesmo se tais ditados se contradigam?

A tradição

Resta que, quando tais explicações parecem suficientes, deseja-se divulgá-las, compartilhá-las. Ê desse modo que se elabora a tradição, princípio de transmissão de tal saber. Na família, na comunidade em diversas escalas, a tradição lega saber que parece útil a todos e que se julga adequado conhecer para conduzir sua vida. Esse saber é mantido por ser presumidamente verdadeiro hoje em dia, e o é hoje porque o era no passado e deveria assim permanecer, pensa-se, no futuro. A tradição dita o que se deve conhecer, compreender, e indica, por conseqüência, como se comportar. Diz, por exemplo, qual é o melhor momento para semear o campo, para lançar sua rede; ensina quais são as regras básicas de convivência, como curar tal ou tal doença; pode chegar a desaconselhar a ingestão de leite com manga, como em algumas regiões do Brasil, ou afirmar que um dente de alho acaba com a gripe... Os saberes que a tradição transmite parecem, às vezes, não se basearem em qualquer dado de experiência racionalizada. Assim, transmite-se, em uma sociedade como a nossa, a superstição de que o número 13 traz azar - a ponto de, em certos hotéis ou edifícios públicos, não ser contado o décimo terceiro andar! Mas, em relação a outras crenças do gênero, pode-se suspeitar da validade da experiência. Assim, acreditar que passar sob uma escada dá azar vem provavelmente de infelizes experiências reais (pode-se imaginá-las facilmente!). Do mesmo modo, bem antes de se dispor dos conhecimentos trazidos pela ciência moderna sobre as conseqüências do incesto e dos casamentos consangüíneos, a tradição proibia essas práticas na maioria das sociedades: pode-se supor que a observação de suas conseqüências teria oportunizado um saber espontâneo.

A autoridade

Com freqüência, sem provas metodicamente elaboradas, autoridades se encarregam da transmissão da tradição. Desse modo, a Igreja Católica decidiu, muito cedo, regras para o casamento (uniões proibidas entre primos, proclamas, declarações de impedimentos conhecidos) tendo como objetivo prevenir as uniões incestuosas e inclusive consangüíneas. Impõe sua autoridade aos fiéis por meio dos preceitos ensinados pelo clero. Todas as religiões transmitem, portanto, sua autoridade através de saberes que guiam a vida de seus fiéis sem que seu sentido ou origem sejam sempre evidentes. Não deixam de ter um sentido ou uma origem. Assim, por exemplo, a proibição de comer carne de porco entre os muçulmanos provém provavelmente do desejo de se proteger da triquinose, doença provocada por um parasita que se encontra, muitas vezes, no suíno e da qual não se sabia exatamente como se preservar em determinada época. Mas, atualmente, o crente que respeita o preceito conhece sua origem? Tal saber, do qual se encarregam as autoridades, guarda, assim, para aqueles que o recebem, seu caráter de saber espontâneo. Sua força deve-se ao fato de que nem todos podem construir um saber espontâneo sobretudo o que seria útil conhecer. Daí a comodidade, para conduzir sua vida, de um repertório de saber pronto. Daí também, em contrapartida, o peso que possuem as autoridades (padres, médicos, bruxos, dirigentes, pais, professores, etc.) que o transmitem e as instituições (igrejas, escolas, etc.) que servem de quadro à transmissão desse saber. Esse peso varia, entretanto, segundo a confiança recebida. Assim, um descrente dará pouca autoridade ao padre e, por conseqüência, ao saber do qual é depositário. O  valor do saber imposto repousa, portanto, em nosso consentimento em recebê-lo, e esse consentimento repousa, por sua vez, na confiança que temos naqueles que o veiculam.

O saber racional

Muito cedo, o ser humano sentiu a fragilidade do saber fundamentado na intuição, no senso comum ou na tradição; rapidamente desenvolveu o desejo de saber mais e de dispor de conhecimentos metodicamente elaborados e, portanto, mais confiáveis. Mas a trajetória foi longa entre esses primeiros desejos e a concepção do saber racional que acabou se estabelecendo, no Ocidente, há apenas um século, com uma forma dita científica. Nesse estágio, um sobrevôo histórico impõe-se para que nos lembremos dessa trajetória.

O reino dos filósofos

Os filósofos desempenharam um papel de primeiro plano nessa trajetória, a tal ponto que, durante muito tempo, o saber científico, no Ocidente pelo menos, pareceu se confundir com o filosófico. Uma importante fonte encontra-se na Grécia Antiga. É nela que surge, de modo generalizado, a desconfiança em relação às explicações do universo baseadas nos deuses, na magia ou na superstição. No lugar disso, acredita-se que a mente é capaz, apenas com o seu exercício, de produzir o saber apropriado. Os filósofos gregos, dos quais Platão e Aristóteles são talvez os representantes mais conhecidos, desenvolvem o instrumento da lógica , especialmente a distinção entre sujeito e objeto; de um lado, o sujeito que procura conhecer, e de outro, o objeto a ser conhecido, bem como as relações entre ambos. Igualmente o princípio da causalidade, o que faz com que uma causa provoque uma conseqüência e que a conseqüência seja compreendida pela compreensão da causa. Daí estes esquemas de raciocínio, na forma de silogismo, do qual este é o exemplo clássico: ''Todo o homem é mortal; Sócrates é homem; portanto, Sócrates é mortal". Nesse tipo de raciocínio, algo sendo posto, algo decorre disso necessariamente. Nosso exemplo mostra um raciocínio dedutivo, mas os gregos desenvolvem também o raciocínio indutivo, ambos permanecendo hoje essenciais à construção metódica do saber. Os filósofos gregos, enfim, interessam-se por este importante instrumento da 16gica que são as ciências matemáticas e começam a servir-se delas para abordar os problemas do real ou interpretá-lo. No decorrer dos séculos que seguem à Antigüidade Grega, notamos pouco progresso na concepção da ciência e dos métodos de constituição do saber. Os romanos negligenciam a teoria pela prática, sobretudo nos domínios da agricultura, arquitetura e guerra. Mostram-se mais técnicos do que sábios. Com a Idade Média, reencontramos a reflexão filosófica, mas, dessa vez, dominada pela religião e pelo desejo de conciliar os saberes adquiridos dos filósofos - especialmente de Aristóteles, que se conhece pelas traduções árabes - com os dogmas do cristianismo. A teologia supera a filosofia. O Renascimento, que marca uma brilhante renovação nas artes e nas letras, não conhece equivalente no domínio do saber científico. Superstições, magia e bruxaria concorrem para explicar o real: a alquimia, essa ciência oculta que pretende transformar em ouro metais sem valor, prospera. Mas a inclinação da época para rejeitar a tradição se, por um lado, leva à negligência do saber obtido dos filósofos do passado, portanto conduz igualmente a encarar novos pontos de vista que irão florescer no século XVII: surge principalmente a preocupação em se proceder à observação empírica do real antes de interpretá-lo pela mente, depois, eventualmente, de submetê-lo à experimentação, recorrendo-se às ciências matemáticas para assistir suas observações e suas explicações. À conjunção da razão e da experiência, a ciência experimental começa a se definir. Como escrevia o filósofo inglês Francis Bacon, em 1620: "Nossa maior fonte, da qual devemos tudo esperar, é a estreita aliança destas duas faculdades: a experimental e a racional, união que ainda não foi formada". O século XVII assiste, portanto, à confirmação dessas tendências, e o pensamento científico moderno começa a se objetivar. Um saber racional, pensa-se cada vez mais, constr6i-se a partir da observação da realidade (empirismo) e coloca essa explicação à prova (experimentação). O raciocínio indutivo conjuga-se então com o raciocínio dedutivo, unidos por esta articulação que é a hipótese: é o raciocínio hipotético-dedutivo. Este, cada vez mais associado às ciências matemáticas, para apreender a dimensão dos fenômenos, é também auxiliado pela construção de novos instrumentos de medida (tempo, distância, calor, peso, etc.). A partir de então, o saber não repousa mais somente na especulação, ou seja, no simples exercício do pensamento. Baseia-se igualmente na observação, experimentação e mensuração, fundamentos do método científico em sua forma experimental. Assim, poder-se-ia dizer que o método científico nasce do encontro da especulação com o empirismo. Além disso, não se trata mais apenas de encontrar uma explicação, ainda que geral, do fenômeno estudado, mas definir o princípio que fundamenta essa explicação geral. Tornava-se, por exemplo, importante, para Newton, além da observação da queda das maçãs - retomando uma ilustração bem conhecida -, definir o princípio dessa queda, que se denominou lei da gravidade universal. No lugar das leis "divinas" surgem a noção de leis da natureza e a idéia de que a ciência tem por objetivo definir suas leis.

A ciência triunfante

Durante o século XVIII, os princípios da ciência experimental desenvolvem-se por meio de múltiplas aplicações. As descobertas são muitas, sobretudo no campo dos conhecimentos de natureza física. Pois, no domínio que hoje denominamos ciências humanas, o procedimento especulativo dos filósofos predomina. O que não impede que façam grandes reflexões sobre a condição do homem social e gozem de uma considerável influência na sociedade, particularmente junto às classes dominantes. Não chamamos, aliás, em vão o século XVIII de o "Século das Luzes", nome da corrente de pensamento elaborada e difundida pelos filósofos! Mas é no século XIX que a ciência triunfa. No domínio das ciências da natureza, o ritmo e o número das descobertas abundam. Mas, saem dos laboratórios para ter aplicações práticas: ciência e tecnologia encontram-se. A pesquisa fundamental, cujo objetivo é conhecer pelo próprio conhecimento, é acompanhada pela pesquisa aplicada, a qual visa a resolver problemas concretos. Tais descobertas e suas aplicações práticas modificam profundamente a fisionomia do século. Todos, ou quase todos, os domínios da atividade humana são atingidos. Na agricultura, a produção alimentar cresce com as novas técnicas agrícolas, os instrumentos para arar, os adubos; o temor da penúria desfaz-se aos poucos. A produção de objetos manufaturados também aumenta consideravelmente, graças às máquinas, às novas fontes de energia (a eletricidade, principalmente), aos novos materiais e diferentes modos de fabricação (a fábrica substituindo o ateliê). Os bens produzidos, agrícolas ou industriais, são mais ampla e facilmente distribuídos, em especial com o auxílio das ferrovias e da navegação a vapor; produtos raros até então surgem nos mercados, provenientes, por vezes, de outros continentes; as quantidades são estáveis e abundantes, e os preços baixam. No domínio das comunicações, a chegada do telégrafo e do telefone aproxima os lugares e os homens. No da saúde, os micróbios e bacilos são descobertos, assim como os modos de preveni-los (higiene, pasteurização, vacinação, assepsia) e de como combatê-los (assepsia e anti-sepsia, cirurgia, anestesia, medicações diversas). As epidemias tornam-se mais raras no Ocidente; a expectativa de vida aumenta consideravelmente, em mais de 1/3 em certas regiões. A população urbaniza-se e as cidades, iluminadas pela eletricidade, bem como dotadas de eficazes sistemas de esgoto e modernos sistemas de transporte comum - o tramway, especialmente -, são abastecidas de bens de todos os tipos e se tomam mais agradáveis para viver. O homem do século XIX percebe, com clareza, essas mudanças e os melhoramentos que trazem para sua vida. É, aliás, provavelmente o primeiro na história a morrer em um mundo profundamente diferente daquele que o viu nascer. A época lhe parece repleta de maravilhas, e isso graças à ciência que lhe surge como fonte inesgotável de progresso. Por que então não aplicar seus princípios e seu método aos demais domínios da atividade humana, no campo do saber relativo ao homem social, por exemplo? Sobretudo porque esses progressos são, por outro lado, acompanhados de vários problemas sérios no plano social, o que seria oportuno solucionar logo que possível. (Disso trataremos no capítulo 3.)

As ciências humanas e o positivismo

Seguindo o modelo das ciências da natureza as ciências humanas desenvolvem-se durante a segunda metade do século XIX. Até então, o estudo do homem social havia permanecido entre os filósofos, do qual trataram, muitas vezes, de maneira brilhante. No século precedente, as especulações dos filósofos tiveram uma considerável influência na concepção das sociedades e de seu governo. Suas idéias universalidade dos direitos, igualdades, liberdades sociais e econômicas, contrato social entre os dirigentes e os povos, livre arbítrio - foram adotadas por numerosos dirigentes e, sob a influência da classe burguesa, conduziram inclusive grandes revoluções, sobretudo na América e na França. Há muito tempo, por outro lado, filósofos tinham se debruçado sobre esses objetos de estudo hoje confiados às ciências humanas. Desde a longínqua Antigüidade, pensadores como Tucídides, na história, Ptolomeu, na geografia, Xenofonte, na antropologia (ao menos, o que se ficaria tentado a chamar atualmente de história, geografia, antropologia), e vários outros o haviam feito. Mas o século XIX desejava, no domínio do saber sobre o homem e a sociedade, conhecimentos tão confiáveis e práticos quanto os desenvolvidos para se conhecer a natureza física, retirados de qualquer princípio de interpretação anterior ou exterior, especialmente religioso. O método empregado no campo da natureza parece tão eficaz que não se vê razão pela qual também não se aplicaria ao ser humano. É com esse espírito e com essa preocupação que se desenvolvem - serão inventadas, poder-se-ia dizer - as ciências humanas na segunda metade do século XIX. Desenvolvem-se, segundo uma concepção da construção do saber científico nomeada positivismo, cujas principais características serão a seguir apresentadas.

Empirismo
o conhecimento positivo parte da realidade como os sentidos a percebem e ajusta-se à realidade. Qualquer conhecimento, tendo uma origem diferente da experiência da realidade - crenças, valores, por exemplo -, parece suspeito, assim como qualquer explicação que resulte de idéias inatas.

Objetividade
o conhecimento positivo deve respeitar integralmente o objeto do qual trata o estudo; cada um deve reconhecê-lo tal como é. O sujeito conhecedor (o pesquisador) não deve influenciar esse objeto de modo algum; deve intervir o menos possível e dotar-se de procedimentos que eliminem ou reduzam, ao mínimo, os efeitos não controlados dessas intervenções.

Experimentação
O conhecimento positivo repousa na experimentação. A observação de um fenômeno leva o pesquisador a supor tal ou tal causa ou conseqüência: é a hipótese. Somente o teste dos fatos, a experimentação, pode demonstrar sua precisão.

Validade
A experimentação é rigorosamente controlada para afastar os elementos que poderiam perturbá-la, e seus resultados, graças às ciências matemáticas, são mensurados com precisão. A ciência positiva é, portanto, quantificativa. Isso permite, se se chega às mesmas medidas reproduzindo-se a experiência nas mesmas condições, concluir a validade dos resultados e generalizá-los.

Leis e previsão
Sobre o modelo do saber constituído no domínio físico, supõe-se que se podem igualmente estabelecer, no domínio do ser humano, as leis que o determinam. Essas leis, estima-se, estão inscritas na natureza; portanto, os seres humanos estão, inevitavelmente, submetidos. Nesse sentido, o conhecimento positivo é determinista. O conhecimento dessas leis permitiria prever os comportamentos sociais e geri-los cientificamente. É pois apoiando-se no modelo da ciência positiva - o positivismo - que se desenvolvem as ciências humanas, na segunda metade do século XIX. Este modelo perdurará, e pode-se encontrá-lo até os nossos dias.


Exercícios

1) O que é um saber espontâneo? No que se baseia.

2) Qual a principal diferença entre um saber espontâneo e um saber racional? Explique

3) O que é empirismo? O que é especulação?

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Como a ciência se desenvolve?


Como estamos vendo, a Ciência não é estática, ela se desenvolve. Para explicar esse desenvolvimento um físico que estuda a Ciência, Thomas Kuhn, criou a idéia de paradigma para explicar a História das ciências. Com o Paradigma criou um modelo explicativo para entender como as ciências evoluem. Para Kuhn as ciências se desenvolvem por revoluções no conhecimento. Inicialmente não existe ciência, somente senso comum. Surgindo a ciência ela se pauta em um modelo comumente aceito pela comunidade científica, o qual ele denomina “Paradigma”. Esse paradigma forma uma ciência normal, na qual os cientista desenvolvem os conhecimentos dentro de determinado molde epistemológico. Entretanto, em determinado momento, esse modelo científico começa a não suprir mais as demandas sociais sobre a ciência. Nesse momento o modelo científico (paradigma) entra em crise. Estrutura-se críticas fundamentais ao modelo científico anterior. E propõem-se novos modelos científicos revolucionários. Tal mudança não é pacífica e muito menos ocorre de forma linear. Apenas com um enfoque estrutural é possível observar tal mudança. Para Kuhn, sucessões de crises e novos paradigmas hão de acontecer com o tempo.
Pré-ciência è  Ciência normal è Crise/Revolução è Nova Ciência normal è Nova Crise.

Texto complementar


CHALMERS, A.F. O que é ciência afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. (pp. 123-137)

VIII - TEORIAS COMO ESTRUTURAS: OS PARADIGMAS DE KUHN

1. Comentários introdutórios

Um segundo ponto de vista de que uma teoria científica é uma estrutura complexa de algum tipo é o que recebeu muita atenção nos últimos anos. Refiro-me ao ponto de vista desenvolvido por Thomas Kuhn, cuja primeira versão apareceu em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado inicialmente em 1962([i]). Kuhn iniciou sua carreira acadêmica como físico e voltou então sua atenção para a história da ciência. Ao fazê-lo descobriu que seus preconceitos sobre a natureza da ciência haviam se esfacelado. Veio a perceber que os relatos tradicionais da ciência, fosse indutivista ou falsificacionista, não suportam uma comparação com o testemunho histórico. A teoria da ciência de Kuhn foi desenvolvida subseqüentemente como uma tentativa de fornecer uma teoria mais corrente com a situação histórica tal como ele a via. Uma característica-chave de sua teoria é a ênfase dada ao caráter revolucionário do progresso científico, em que uma revolução implica o abandono de uma estrutura teórica e sua substituição por outra, incompatível. Um outro traço essencial é o importante papel desempenhado na teoria de Kuhn pelas características sociológicas das comunidades científicas.
As abordagens de Lakatos e Kuhn têm algumas coisas em comum. Em especial, ambas fazem a seus relatos filosóficos a exigência de resistirem à crítica da história da ciência. O relato de Kuhn precede a metodologia dos programas de pesquisa científica de Lakatos e acho justo dizer que Lakatos adaptou alguns dos resultados de Kuhn para seus próprios propósitos. O relato de Lakatos foi apresentado em primeiro lugar neste livro porque é visto, da maneira melhor, como a culminação do programa popperiano em uma resposta direta a ele, e uma tentativa de melhorar os limites do falsificacionismo. A diferença mais importante entre Kuhn, de um lado, e Popper e Lakatos, de outro, é a ênfase do primeiro nos fatores sociológicos. O “relativismo” de Kuhn será discutido e criticado mais adiante no livro. Neste capítulo eu me limitarei a um simples resumo dos pontos de vista de Kuhn.
O quadro de Kuhn da maneira como progride a ciência pode ser resumido no seguinte esquema aberto:
pré-ciência – ciência normal – crise-revolução – nova ciência normal – nova crise
A atividade desorganizada e diversa que precede a formação da ciência torna-se eventualmente estruturada e dirigida quando a comunidade científica atém-se a um único paradigma. Um paradigma é composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação adotadas por uma comunidade científica específica. Os que trabalham dentro de um paradigma, seja ele a mecânica newtoniana, ótica de ondas, química analítica ou qualquer outro, praticam aquilo que Kuhn chama de ciência normal. Os cientistas normais articularão e desenvolverão o paradigma em sua tentativa de explicar e de acomodar o comportamento de alguns aspectos relevantes do mundo real tais como relevados através dos resultados de experiências. Ao fazê-lo experimentarão, inevitavelmente, dificuldades e encontrarão falsificações aparentes. Se dificuldades deste tipo fugirem ao controle, um estado de crise se manifestará. Uma crise é resolvida quando surge um paradigma inteiramente novo que atrai a adesão de um número crescente de cientistas até que eventualmente o paradigma original, problemático, é abandonado. A mudança descontínua constitui uma revolução científica. O novo paradigma, cheio de promessa e aparentemente não assediado por dificuldades supostamente insuperáveis, orienta agora a nova atividade científica normal até que também encontre problemas sérios e o resultado seja uma outra revolução. Com este resumo como uma prelibação, vamos adiante e vejamos em maior detalhe os vários componentes do esquema de Kuhn.

2. Paradigmas e ciência normal

Uma ciência madura é governada por um único paradigma.([ii]) O paradigma determina os padrões para o trabalho legítimo dentro da ciência que governa. Ele coordena e dirige a atividade de “solução de charadas” do grupo de cientistas normais que trabalham em seu interior. A existência de um paradigma capaz de sustentar uma tradição de ciência normal é a característica que distingue a ciência da não-ciência, segundo Kuhn. A mecânica newtoniana, a ótica de ondas e o eletromagnetismo clássico todos constituíram e talvez constituam paradigmas e se qualificam como ciências. Grande parte da sociologia moderna não tem um paradigma e, conseqüentemente, deixa de qualificar-se como ciência.
Como será explicado mais adiante, é da natureza de um paradigma iludir uma definição precisa. É, entretanto, possível descrever alguns dos componentes típicos que entram em sua composição. Entre estes componentes estarão leis explicitamente declaradas e suposições teóricas comparáveis aos componentes do núcleo irredutível de um programa de pesquisa lakatosiano. É assim que as leis do movimento de Newton formam parte do paradigma newtoniano, e as questões de Maxwell formam parte do paradigma que constitui a teoria eletromagnética clássica. Os paradigmas devem também incluir maneiras-padrão de aplicação das leis fundamentais a uma variedade de tipos de situação. Por exemplo, o paradigma newtoniano deverá incluir métodos para aplicar as leis de Newton aos movimentos planetários, aos pêndulos, às colisões de bolas de bilhar e assim por diante. A instrumentação e as técnicas instrumentais necessárias para fazer com que as leis do paradigma se apliquem ao mundo real estarão também incluídas no paradigma. A aplicação do paradigma newtoniano na astronomia envolve o uso de tipos aprovados de telescópios, juntamente com as técnicas para o seu uso e uma variedade de técnicas para a correção dos dados coletados com sua ajuda. Um componente adicional dos paradigmas consiste em alguns princípios metafísicos muito gerais que orientam o trabalho no interior de um paradigma. Durante todo o século XIX o paradigma newtoniano foi governado por uma suposição parecida com “Todo o mundo físico deve ser explicado como um sistema mecânico que opera sob a influência de várias forças segundo os ditames das leis do movimento de Newton”, e o programa cartesiano no século XVII envolvia o princípio “Não há vácuo e o universo físico é um grande mecanismo em que todas as forças assumem a forma de um impulso”. Finalmente todos os paradigmas conterão algumas recomendações metodológicas muito gerais tais como “Faça tentativas sérias para o seu paradigma corresponder à natureza”, ou “Trate os fracassos na tentativa de fazer o seu paradigma corresponder à ciência como problemas sérios”.
A ciência normal implica tentativas detalhadas de articular um paradigma com o objetivo de melhorar a correspondência entre ele e a natureza. Um paradigma será sempre suficiente mente impreciso e aberto para que se precise fazer muito trabalho desse tipo.([iii]) Kuhn retrata a ciência normal como uma atividade de resolução de problemas governada pelas regras de um paradigma. Os problemas serão tanto de natureza teórica quanto experimental. Dentro do paradigma newtoniano, por exemplo, problemas teóricos típicos envolvem projetar técnicas matemáticas para lidar com o movimento de um planeta sujeito a mais de uma força de atração e desenvolver suposições adequadas para aplicar as leis de Newton ao movimento dos fluidos. Entre os problemas experimentais estão incluídos a melhoria da precisão das observações telescópicas e o desenvolvimento de técnicas experimentais capazes de produzir mensurações confiáveis da constante gravitacional. Os cientistas normais devem pressupor que um paradigma lhes dê os meios para a solução dos problemas propostos em seu interior. Um fracasso em resolver um problema é visto como um fracasso do cientista e não como uma falta de adequação do paradigma. Problemas que resistem a uma solução são vistos mais como anomalias do que como falsificações de um paradigma. Kuhn reconhece que todos os paradigmas conterão algumas anomalias (e.g. a teoria copernicana e o tamanho aparente de Vênus ou o paradigma newtoniano e a órbita de Mercúrio) e rejeita todo tipo de falsificacionismo.
Um cientista normal não deve ser crítico do paradigma em que trabalha. Somente assim ele será capaz de concentrar seus esforços na articulação detalhada do paradigma e de fazer o trabalho esotérico que é necessário para sondar a natureza em profundidade. E a necessidade de desacordo a respeito das coisas fundamentais que distingue a ciência normal e madura Ia atividade relativamente desorganizada da pré-ciência imaura. Segundo Kuhn, esta última é caracterizada pelo total desacordo e pelo debate constante a respeito dos fundamentos, tanto assim que é impossível se dedicar ao trabalho detalhado, esotérico. Haverá quase tantas teorias quanto há trabalhadores no campo, e cada teórico será obrigado a começar de novo e a justificar sua própria abordagem específica. Kuhn oferece como exemplo a ótica antes de Newton. Houve uma ampla diversidade de teorias sobre a natureza da luz desde o tempo dos antigos até Newton. Não se alcançou nenhum acordo geral, e nenhuma teoria detalhada, geralmente aceita, surgiu antes que Newton propusesse e defendesse sua teoria das partículas. Os teóricos rivais do período da pré-ciência não somente discordavam a respeito de suposições teóricas fundamentais mas também a respeito de todo tipo de fenômenos de observação relevantes às suas teorias. Na medida em que Kuhn reconhece o papel desempenhado por um paradigma na orientação da busca e interpretação de fenômenos observáveis, ele concilia a maior parte daquilo que descrevi como a dependência que a observação tem da teoria no Capítulo III.
Kuhn insiste que há mais coisas num paradigma do que é possível tornar claro sob a forma de regras e orientações explicitas. Ele invoca a discussão de Wittgenstein da noção de “jogo” para ilustrar parte do que quer dizer. Wittgenstein argumentou explicar em detalhe as condições suficientes e necessárias para que uma atividade seja um jogo. Quando se tenta, descobre-se invariavelmente uma atividade incluída na nossa definição, mas que não gostaríamos de considerar um jogo, ou uma atividade excluída pela definição, mas que gostaríamos de considerar um jogo. Kuhn afirma que a mesma situação existe quanto aos paradigmas. Quando se tenta dar uma caracterização precisa e explicita de algum paradigma na história da ciência ou na atual, fica sempre aparente que algum trabalho dentro do paradigma viola a caracterização. Kuhn insiste, contudo, que este estaco de coisas não torna insustentável o conceito de paradigma, como a situação semelhante em relação aos “jogos” não exclui o uso legítimo daquele conceito. Embora não haja uma caracterização explícita e completa, os cientistas individuais adquirem conhecimento de um paradigma através de sua educação científica. Resolvendo problemas-padrão, desempenhando experiências-padrão e, eventualmente, fazendo pesquisa sob orientação de um supervisor que já é um praticante treinado dentro do paradigma, um aspirante a cientista fica conhecendo os métodos, as técnicas e os padrões daquele paradigma. Ele não será mais capaz de fazer um relato explícito dos métodos e habilidades que adquiriu, mas um mestre carpinteiro é capaz de descrever perfeitamente o que está por trás de suas habilidades. Grande parte do conhecimento de um cientista normal será tácita, no sentido desenvolvido por Michael Polanyi.([iv])
Por causa da maneira como ele é treinado – e como é necessário que seja treinado para trabalhar de forma eficiente – um cientista normal típico não estará cônscio da natureza precisa do paradigma em que trabalha e não será capaz de articulá-la. Disso não se pode afirmar, entretanto, que um cientista não será capaz de tentar articular as pressuposições implicadas em seu paradigma, caso haja necessidade. Tal necessidade surgirá quando um paradigma for ameaçado por um rival. Nestas circunstâncias será necessário tentar detalhar as leis gerais, os princípios metafísicos e metodológicos etc. envolvidos num paradigma, para defendê-lo contra as alternativas envolvidas no novo paradigma ameaçador. Na próxima seção resumirei o relato de Kuhn de como um paradigma pode entrar em dificuldades e ser substituído por um rival.

3. Crise e revolução

O cientista normal trabalha confiantemente dentro de uma área bem definida ditada por um paradigma. O paradigma lhe apresenta um conjunto de problemas definidos justamente com os métodos que acredita serem adequados para a sua solução. Caso ele culpe o paradigma por qualquer fracasso em resolver um problema, estará aberto às mesmas acusações de um carpinteiro que culpa suas ferramentas. No entanto, fracassos serão encontrados e podem, eventualmente, atingir um grau de seriedade que constitua uma crise séria para o paradigma e que possa conduzir à rejeição de um paradigma e sua substituição por uma alternativa incompatível.
A mera existência de enigmas não resolvidos dentro de um paradigma não constitui uma crise. Kuhn reconhece que os paradigmas sempre encontrarão dificuldades. Anomalias haverá sempre. É somente sob conjuntos especiais de condições que as anomalias podem se desenvolver de maneira a solapar a confiança num paradigma. Uma anomalia será considerada particularmente séria se for vista atacando os próprios fundamentos de um paradigma e resistindo, entretanto, persistentemente, às tentativas dos membros de uma comunidade científica normal para removê-la. Kuhn cita como exemplo os problemas associados com o éter e o movimento da Terra em relação a ele na teoria eletromagnética de Maxwell, perto do fim do século XIX. Um exemplo menos técnico seriam os problemas colocados pelos cometas para o cosmo pleno e ordenado de esferas cristalinas interconectadas de Aristóteles. As anomalias serão também consideradas sérias se forem importantes para alguma necessidade social urgente. Os problemas que assediavam a astronomia ptolemaica eram urgentes à luz da necessidade da reforma do calendário na época de Copérnico. Relacionado também com a seriedade de uma anomalia será o período de tempo que ela resista a tentativas de removê-la. O número de anomalias sérias é um fator adicional a influenciar o começo de uma crise.
Segundo Kuhn, uma análise das características de um período de crise na ciência exige tanto a competência de um psicólogo quanto a de um historiador. Quando as anomalias passam a apresentar problemas sérios para um paradigma, um período de “acentuada insegurança profissional” começa.([v]) As tentativas de resolver o problema tornam-se cada vez mais radicais e as regras colocadas pelo paradigma para a solução dos problemas tornam-se, progressivamente, mais frouxas. Os cientistas normais começam a se empenhar em disputas metafísicas e filosóficas e tentam defender suas inovações – de status dúbio, do ponto de vista do paradigma – com argumentos filosóficos. Os cientistas começam a expressar abertamente seu descontentamento e inquietação com o paradigma reinante. Kuhn cita a resposta de Wolfgang Pauli, ao que viu como a crise crescente da física por volta de 1924. Pauli, exasperado, confessou a um amigo: “No momento a física está mais uma vez terrivelmente confusa. De qualquer forma, é difícil demais para mim; desejaria ter sido um comediante de cinema ou algo parecido e nunca ter ouvido falar em física”.([vi]) Uma vez que um paradigma tenha sido enfraquecido e solapado a tal ponto, que seus proponentes perdem a confiança nele, chega o tempo da revolução.
A seriedade de uma crise se aprofunda quando aparece um paradigma rival. “O novo paradigma, ou um indício suficiente para permitir uma articulação posterior, surge de imediato, algumas vezes no meio da noite, na mente de um homem profundamente imerso na crise.”([vii]) O novo paradigma será diferente do antigo e incompatível com ele. As diferenças radicais serão de vários tipos.
Cada paradigma verá o mundo como sendo composto de diferentes tipos de coisas. O paradigma aristotélico via o universo dividido em dois reinos, a região sobrelunar, incorruptível e imutável, e a região terrestre, corruptível e mutável. Paradigmas posteriores viram o universo todo como sendo composto dos mesmos tipos de substâncias materiais. A química anterior a Lavoisier afirma que o mundo continha uma substância chamada flogisto, expulsa dos materiais quando queimados. O novo paradigma de Lavoisier implica que não havia semelhante coisa, ao passo que existe o gás oxigênio que desempenha um papel muito diferente na combustão. A teoria eletromagnética de Maxwell implicava um éter que ocupava o espaço todo, enquanto a recolocação radical de Einstein eliminava o éter.
Paradigmas rivais considerarão diferentes tipos de questões como legítimas ou significativas. Questões a respeito do peso eram importantes para os teóricos do flogisto e insignificantes para Lavoisier. Questões a respeito da massa dos planetas eram fundamentais para os newtonianos e heréticas para os aristotélicos. O problema da Terra relativa ao éter, de significação profunda para os físicos pré-einsteinianos, foi dissolvido por Einstein. Propondo, igualmente, diferentes tipos de questões, os paradigmas envolverão padrões diferentes e incompatíveis. A ação não explicada á distância era permitida pelos newtonianos mas desprezada pelos cartesianos por ser metafísica, ou mesmo oculta. A ação sem causa carecia de sentido para Aristóteles e era axiomática para Newton. A transmutação tem lugar importante na física moderna (como na alquimia medieval) mas era completamente contrária aos objetivos do programa atomístico de Dalton. Um certo número de eventos possíveis de descrição da microfísica moderna envolve uma indeterminabilidade que não tem lugar no programa newtoniano.
A maneira pela qual um cientista vê um aspecto especifico do mundo será orientada pelo paradigma em que está trabalhando. Kuhn argumenta que há uma explicação para os proponentes de paradigmas rivais estarem “vivendo em mundos diferentes”. Cita como prova o fato de que mudanças nos céus começaram a ser notadas, registradas e discutidas pelos astrônomos do Ocidente depois da proposta da teoria copernicana. Antes disso, o paradigma aristotélico havia dito que não poderia haver mudanças na região sobrelunar e, conseqüentemente, nenhuma mudança foi observada. As mudanças notadas eram explicadas como sendo perturbações na atmosfera superior. Outros exemplos de Kuhn, e de outros mais, já foram dados no Capítulo III.
A mudança de adesão por parte de cientistas individuais de um paradigma para uma alternativa incompatível é semelhante, segundo Kuhn, a uma “troca gestáltica” ou a uma “conversão religiosa”. Não haverá argumento puramente lógico que demonstre a superioridade de um paradigma sobre outro e que force, assim, um cientista racional a fazer a mudança. Uma das razões por que não é possível tal demonstração é o fato de estar envolvida uma variedade de fatores no julgamento que um cientista faz dos méritos de uma teoria científica. A decisão de um cientista individual dependerá da prioridade que ele dá a esses fatores. Eles incluirão coisas tais como simplicidade, a ligação com alguma necessidade social urgente, habilidade de resolver algum tipo de problema específico e assim por diante. Assim, um cientista pode ser atraído para a teoria copernicana por causa da simplicidade de certas características matemáticas dela. Um outro será atraído por nela ver a possibilidade de reforma do calendário. Um terceiro poderá ter sido impedido de adotar a teoria copernicana por causa de seu envolvimento com a mecânica terrestre e sua consciência dos problemas que a teoria copernicana apresenta para ela. Um quarto poderia rejeitar o copernicanismo por motivos religiosos.
Um segundo motivo para que não exista nenhuma demonstração logicamente obrigatória da superioridade de um paradigma sobre outro origina-se no fato de que os proponentes de paradigmas rivais aderem a conjuntos diferentes de padrões, de princípios metafísicos etc. Julgado pelos seus próprios padrões, o paradigma A pode ser superior ao paradigma B, ao passo que, se forem usados como premissas os padrões, o julgamento poderá ser invertido. A conclusão de um argumento só é obrigatória se suas premissas forem aceitas. Partidários de paradigmas rivais não aceitarão as premissas uns dos outros e assim não serão, necessariamente, convencidos pelos seus argumentos. É por este tipo de motivo que Kuhn compara as revoluções científicas às revoluções políticas. Exatamente da maneira como “as revoluções políticas objetivam mudar as instituições políticas de formas proibidas pelas próprias instituições” e, conseqüentemente, “fracassa o resumo político”, assim a escolha “entre paradigmas prova ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida em comunidade” e argumento algum pode ser “lógica ou probabilisticamente convincente”.([viii]) Isto não quer dizer, entretanto, que vários argumentos não se encontram entre os fatores importantes que influenciam as decisões dos cientistas. Do ponto de vista de Kuhn, os tipos de fatores que se mostram eficientes em fazer com que os cientistas mudem de paradigma é uma questão a ser descoberta pela investigação psicológica e sociológica.
Há, então, um certo número de motivos inter-relacionados para que, quando um paradigma compete com outro, não haja um argumento logicamente convincente que faça com que um cientista racional abandone um pelo outro. Não há um critério único pelo qual um cientista deva julgar o mérito ou a promessa de um paradigma e, ainda mais, proponentes de programas competitivos aderirão a conjuntos diferentes de padrões e verão o mundo de formas diferentes e o descreverão numa linguagem também diferente. O objetivo de argumentos e de discussões entre os partidários de paradigmas rivais deve ser antes a persuasão que a compulsão. Imagino que neste parágrafo tenha resumido o que se encontra por detrás da afirmação de Kuhn de que os paradigmas rivais são “incomensuráveis”.
Uma revolução científica corresponde ao abandono de um paradigma e adoção de um novo, não por um único cientista somente, mas pela comunidade científica relevante como um todo. À medida que um número cada vez maior de cientistas individuais, por uma série de motivos, é convertido ao novo paradigma, há um “deslocamento crescente na distribuição de adesões profissionais”.([ix]) Para que a revolução seja bem-sucedida, este deslocamento deverá, então, difundir-se de modo a incluir a maioria da comunidade científica relevante, deixando apenas uns poucos dissidentes. Estes serão excluídos da nova comunidade científica e se refugiarão, talvez, no departamento de filosofia. De qualquer forma, eles provavelmente morrerão.

4. A função da ciência normal e das revoluções

Alguns aspectos dos escritos de Kuhn poderiam dar a impressão de que seu relato da natureza da ciência é puramente descritivo, isto é, que seu objetivo não é outro que descrever as teorias científicas ou paradigmas e a atividade dos cientistas. Fosse esse o caso, então o relato da ciência de Kuhn teria pouco valor como teoria da ciência. Uma suposta teoria da ciência, baseada apenas na descrição, estaria aberta a algumas das mesmas objeções que foram levantadas contra o relato indutivista ingênuo de como se chegava às próprias teorias científicas. A menos que o relato descritivo da ciência seja formado por alguma teoria, nenhuma orientação é dada quanto a que tipos de atividades e produtos de atividades devem ser descritos. Especialmente as atividades e as produções de cientistas picaretas precisariam ser documentadas com tantos detalhes quanto as de um Einstein ou de um Galileu.
É um erro, contudo, considerar a caracterização da ciência de Kuhn como se originando somente –de uma descrição do trabalho dos cientistas. Kuhn insiste que seu relato constitui uma teoria da ciência porque inclui uma explicação da função de seus vários componentes. Segundo Kuhn, a ciência normal e as revoluções servem funções necessárias, de modo que a ciência deve implicar estas características ou algumas outras que serviriam para desempenhar as mesmas funções. Vejamos quais são estas funções, segundo Kuhn.
Os períodos de ciência normal dão aos cientistas a oportunidade de desenvolver os detalhes esotéricos de uma teoria. Trabalhando no interior de um paradigma, cujos fundamentos dão como pressupostos, eles são capazes de executar trabalhos teóricos e experimentais rigorosos, necessários para levar a correspondência entre o paradigma e a natureza a um grau cada vez mais alto. É através de sua confiança na adequação de um paradigma que os cientistas são capazes de devotar suas energias a tentativas de resolver os enigmas detalhados que se lhes apresentam no interior de um paradigma, em vez de se empenharem em disputas a respeito da legitimidade de suas suposições e métodos fundamentais. É necessário que a ciência normal seja amplamente não-crítica. Caso todos os cientistas fossem críticos de todas as partes do arcabouço no qual trabalhassem todo o tempo, trabalho algum seria feito em profundidade.
Se todos os cientistas fossem e permanecessem cientistas normais, então uma ciência específica ficaria presa em um único paradigma e não progrediria nunca para além dele. Este seria um erro grave, do ponto de vista kuhniano. Um paradigma incorpora um arcabouço conceitual específico através do qual o mundo é visto e no qual ele é descrito, e um conjunto específico de técnicas experimentais e teóricas para fazer corresponder o paradigma à natureza. Mas não há motivo algum, a priori, para que se espere que um paradigma seja perfeito, ou mesmo o melhor disponível. Não existem procedimentos indutivos para se chegar a paradigmas perfeitamente adequados. Conseqüentemente, a ciência deve conter em seu interior um meio de romper de um paradigma para um paradigma melhor. Esta é a função das revoluções. Todos os paradigmas serão inadequados, em alguma medida, no que se refere à sua correspondência com a natureza. Quando esta falta de correspondência se torna séria, isto é, quando aparece crise, a medida revolucionária de substituir todo um paradigma por um outro torna-se essencial para o efetivo progresso da ciência.
O progresso através de revoluções é a alternativa de Kuhn para o progresso cumulativo característico dos relatos indutivistas da ciência. De acordo com este último ponto de vista, o conhecimento científico cresce continuamente à medida que observações mais numerosas e mais variadas são feitas, possibilitando a formação de novos conceitos, o refinamento de velhos conceitos e a descoberta de novas relações licitas entre eles. Do ponto de vista específico de Kuhn isto é um engano por ignorar o papel desempenhado pelos paradigmas na orientação da observação e da experiência. Exatamente porque os paradigmas possuem uma influência tão persuasiva sobre a ciência praticada no interior deles é que a substituição de uni por outro precisa ser revolucionária.
Vale a pena mencionar uma outra função servida pelo relato de Kuhn. Os paradigmas de Kuhn não são tão preciosos que possam ser substituídos por um conjunto explícito de regras, como foi mencionado acima. É bem possível que cientistas diferentes ou diferentes grupos de cientistas interpretem e apliquem o paradigma de uma maneira um tanto diferente. Face à mesma situação, nem todos os cientistas chegarão à mesma conclusão ou adotarão a mesma estratégia. Isto possui a vantagem de o número de estratégias tentadas ser multiplicado. Os ricos são distribuídos, assim, através da comunidade cientifica e aumentadas as chances de algum sucesso a longo prazo. “De que outra forma”, pergunta Kuhn, “poderia o grupo como um todo distribuir as suas apostas?”.([x])




Exercícios

1) O que é paradigma para Thomas Kuhn?

2) Explique com suas palavras a forma pela qual as ciências se desenvolvem?

3) Ainda sobre ciências é correto afirmar:
01) “Penso, logo existo!” Foi uma dedução de Aristóteles.
02) Newton descobriu a lei da gravidade a partir da observação de uma macieira.
04) As ciências naturais tratam de números.
08) As ciências humanas têm como objeto o homem.
16) No século XIX as ciências se consolidaram, especialmente devido ao sucesso das ciências humanas na revolução industrial.
32) Paradigma vem do prefixo latino Paras (Oposto) e do sufixo grego Digmas (Aquilo que foi dito), significando, portanto: o oposto do que foi dito.


[i] T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1970).
[ii] Desde que escreveu The Structure of Scientific Revolutions Kuhn reconheceu que originalmente utilizou “paradigma” num sentido ambíguo.