quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Resenha do Filme "O nome da Rosa"

O filme “O Nome da Rosa” e a cultura jurídica medieval


1. O filme o nome da Rosa (Der Name der Rose -1986) de Jean-Jacques Annaud é uma produção germânica (com participação italiana e francesa, logo um filme europeu). Apesar de ter a participação de atores renomados no cinema norte-americano como Sean Connery e Christian Slater o filme detém uma áurea diversa da indústria cultural rasa. O filme é uma adaptação do romance com o mesmo nome (O nome da Rosa - Il nome della rosa) de Umberto Eco (1980). Esse livro é um best-seller mundial que mistura elementos históricos, lingüísticos (em especial seu belo recheio de intertextualidades) e filosóficos. Sua produção custou US$ 17 milhões, recuperando apenas US$ 7 milhões nas bilheterias americanas. Porém em todo o planeta o filme obteve uma bilheteria equivalente a US$ 77 milhões. Negativamente avaliado pela crítica americana, recebeu alguns prêmios na Europa e foi o filme mais visto no ano de 1986 na Itália e em diversos países da Europa. Não se revelou sucesso comercial, porém não é possível denominá-lo de fracasso. É, com certeza, uma bela obra de cinema, incompreendida pelo público distraído do mundo blockbuster. O filme aborda boa parte do romance porém deixa importantes passagens de fora.



Entre as diferenças do filme e do livro podem ser enumeradas: a) No livro existe uma importante passagem de um sonho de Adso inspirado na Coena Cypriani (conto satírico medieval sobre personagens bíblicos), algo que se revela como um conto dentro do conto, com toques de surreal, passagem totalmente omitida no filme; b) No livro o Abade explicita a função de investigador para William, ordenando que todos devem ajudá-lo; c) No livro Adso é um noviço beneditino no filme franciscano; d) O personagem Benno Upsala é omitido no filme, mas no livro aparece como suspeito e ajuda nas investigações para provar inocência; e) O abade é a sexta vítima no livro, no filme não se sugere sua morte; f) Muitos diálogos sobre fé e comédia são cortados no filme; g) A motivação do assassino (Jorge) é reduzida no filme, no livro a explicação é mais complexa; h) O fim é diferente no filme, no livro os três acusados de heresia não são postos a fogueira  imediatamente, Remigio é levado Avignon para lá ser executado, Salvatore provavelmente seria perdoado e solto no caminho, e a moça segundo afirma William a Adso, seria queimada no caminho; i) Na tradução para o português William de Baskerville aparece como Guilherme de Baskerville; entre tantas outras diferenças. Mesmo com tais reduções o filme é uma boa adaptação da obra.
2. A história se passa num obscuro mosteiro no remoto norte da Itália em 1327. As cenas foram filmadas na região da Áquila no centro norte da Itália, região que sofreu recentemente (2009) com um terremoto. Um mosteiro pode parecer um ambiente monótono e enfadonho, porém na idade média tal espaço talvez seja exatamente o contrário. É nos mosteiros que a vida intelectual e cultural da idade média é moldada e, especialmente no norte da Itália, tal efervescência gerou movimentos novos com significativos frutos futuros.  
As cenas panorâmicas da região aparecem diversas vezes no filme. Sempre com um fundo sonoro que relembra o tempo lento e a ambientação de mistério. O escorrer lento do tempo pode ser interpretado como um símbolo da diferença da passagem do tempo da atualidade para a idade média. Assim como a imersão numa sociedade diferente da atual exige ambientação gradual que vai se revelando em sua tranqüilidade e calma.
O filme é recheado de luzes e sombras. Simbolicamente a maior parte do filme se passa nas sombras, ou com pouca luz, talvez uma referência ao período medieval, talvez uma referência à falta de iluminação técnica. De qualquer forma, tal detalhe aparece como um quebra cabeça, cada imagem que revela algo no enredo tem sempre uma iluminação com meio rosto aparecendo meio rosto encoberto pelas sombras. A luz em geral aparece com maior intensidade nos ritos religiosos, as sombras aparecem nas cenas consideradas heresias e pecados. Em cada cena a luz e a sombra parecem conversar com o espectador, demonstrando a ambigüidade da situação.
Outro detalhe interessantíssimo é a forma com que os homens estão dispostos com o mundo natural. Os camponeses aparecem em casas em que compartilham a moradia com os animais. Já os monges, de certa forma afastando-se de um convívio direto com os animais, aparecem em desarmonia com a natureza. Como se pode observar quando, por exemplo, matam um porco e com o seu sangue providenciam alimento. Os animais são o elemento central das piadas e da ironia dos cléricos (Um burro ensinando a Escritura aos bispos. O Papa como raposa. E o abade como macaco), principalmente quando se igualam os homens aos animais. Portanto, o convívio com animais era considerado negativo pelos cléricos, algo que somente camponeses incautos poderiam suportar, o que lhes aproximava da irracionalidade. (Afirma Jorge: O riso é um evento demoníaco que deforma as linhas do rosto... e faz os homens parecerem macacos). A vida dos camponeses é relatada superficialmente, porém quase sempre aparece sob o olhar de Adso, um noviço curioso tentando conhecer o diferente.  
O principal estilo de vida que aparece no filme é a vida nos mosteiros. Um modo de vida repleto de rotinas (ferreiro, varrendo o chão), de horários de reza, de descanso, de alimentação, de oração, bem como, de “copiar” livros, o que fica evidente nas passagens em que os monges copistas dedicam-se a copiar determinadas obras. (São regras do monastério: Um monge deve manter silêncio. Ele não deve falar o que pensa... até que seja questionado. Um monge não deve rir. Para isso existe o bobo... que levanta a voz em risos). Também é uma rotina repleta de gestos e símbolos. Cumprimentos (alguns extremamente desconexos para nosso tempo) como beijo na boca entre William e o Abade ou a limpeza das mãos. A forma de dirigir-se a cada um conforme o título. A forma de se vestir e de se comportar. A crença de que o hábito pode conformar o homem (O que nem sempre é verdade conforme o próprio filme argumenta). Outro ponto interessante é a sabedoria prática adquirida pelos monges. (Um talo ralado de bistorta para tratar diarréia. Quanto à cebola, administrada em pequenas quantidades... quente e úmida, ajuda a prolongar a ereção). O boticário Severino comunga de forma mais evidente em relação a tal sabedoria prática.
3. O filme apresenta dois personagens principais, William e Adso. Em seguida podem-se dividir os demais personagens entre os benedetinos, os franciscanos, os enviados do papado e os considerados hereges. As demais pessoas aparecem apenas como parte do cenário. A presença de tantos cléricos com proposições e posições tão diferenciadas é fundante para o enredo, note-se que os únicos que conseguiam se deslocar durante esse período da idade média eram os cléricos ou aqueles em nome de Deus (como os cruzados). A presença de impostos, as barreiras das línguas e a própria condição social impediam que as pessoas se deslocassem por longas distâncias. Faz sentido que somente tais personagens apareçam de forma central nessa história medieval. Uma história contada por cléricos sobre cléricos e apenas uma rosa.
William de Baskerville (Sean Connery), monge franciscano, e Adso von Melk (Christian Slater), noviço que o acompanha, ganham a função de investigar uma série de estranhas mortes que ocorrerem no mosteiro. O personagem William de Baskerville é uma referência a um importante filósofo medieval denominado William de Ockham (também conhecido como Guilherme de Ockham 1288-1348). Tal filósofo franciscano é um dos mais destacados nominalistas medievais. Segundo autores reconhecidos com Michel Villey, os nominalistas anteciparam em grande medida o uso da razão moderna utilizando-se dos fundamentos da filosofia aristotélica (Segundo Adso: O mestre se fiava em Aristóteles, nos filósofos gregos... e em sua notável inteligência lógica). Nesse caso, poderíamos caracterizá-lo como um pré-moderno num mundo medieval. Para ser mais ousado, e provavelmente errôneo, talvez William é um espírito racionalista no mundo medieval (alguns talvez prefeririam a qualificação empirista). Na mesma medida, sua intuição e lógica faz referência direta a Sherlock Holmes, Zadig e outros grandes investigadores dos contos modernos. A observação é a grande arma de William (Não podemos nos deixar influenciar... por boatos irracionais sobre o Anticristo. Em vez disso, vamos exercitar nossos cérebros... e tentar solucionar este torturante enigma.), ele observa e compreende seu noviço Adso. Utiliza-se de instrumentos (astrolábio, ampulheta, óculos, luneta), algo incomum para época, para desvendar o mundo.
Adson de Melk (Christian Slater) também é um personagem que em tese teria existido (apesar da simplificação do nome ao retirar a letra n, o que também tem um sentido simbólico). Seria o filho mais novo do Barão de Melk, uma cidade da atual Áustria. O nome traz uma série de referências intertextuais. Refere-se a Watson, fiel escudeiro de Sherlock Holmes. Também se refere à abreviatura Adso (Adso = ad Simplicio), que significa proveniente do simples, expressão que aparece na obra de Galileo Galilei. Adso, ao contrário de seu mestre, sempre ressalta as pessoas acima da razão lógica das coisas. Novamente de forma ousada, e de igual sorte errônea, Adso talvez seja a imagem de um outro pré-moderno no medieval, porém um pré-moderno mais próximo ao espírito do romantismo. De qualquer forma, a dupla de “estrangeiros” no medieval será o cerne do filme, aproximando o olhar de nosso tempo com o passado, e as descobertas de tais personagens serão essenciais ao desenrolar da trama.
Os personagens benedetinos pertencem à ordem monacal mais antiga que se tem notícia, a ordem que criou o movimento dos mosteiros. Tais personagens não têm referência histórica que comprovem sua existência, porém isso não lhes retira verossimilhança. Tais personagens no filme e no romance aparecem como as principais vítimas de um assassino. Em sete dias sete monges são mortos. A morte de tais monges é um importante símbolo do filme, a tradição e a cultura antigas estão morrendo e uma nova está irrompendo. Dentre os principais o abade (Michael Lonsdale) se destaca pela vontade de organização do mosteiro, numa proposição tradicional de defesa comunitária. Os noviços dessa ordem são as duas primeiras vítimas, Adelmo de Otranto e Venâncio (Urs Althaus), e demonstram que o futuro morre primeiro. As outras vítimas também serão monges beneditinos Berengar (Michael Habeck) o auxiliar da biblioteca, Severino o boticário (Elya Baskin) e Malaquias o bibliotecário (Volker Prechtel). Mas o personagem mais enigmático e profundo de todos os beneditinos é o assassino Jorge de Burgos (Feodor Chaliapin, Jr.), reconhecido como venerável Jorge. Um bibliotecário cego que recheado de experiência e sagacidade comanda todo o jogo de intrigas do filme. Tal personagem é uma referência a Jorge Luís Borges, escritor argentino cego que foi bibliotecário chefe em Buenos Aires. A intertextualidade profunda de Umberto Eco com Borges só poderia ser complementada oferecendo a posição de assassino ao seu grande ídolo em seu grande romance. Jorge realmente é um personagem fantástico. Borges é um escritor único e esplêndido.
Os personagens franciscanos representam uma nova ordem clerical que auxilia na fundação de uma nova cultura. Seus personagens em quase sua totalidade são referências a pessoas reais, Ubertino de Casale (William Hickey) (1259–1329), Michele da Cesena (Leopoldo Trieste) (1270-1342) e  Hugh of Newcastle  (Vernon Dobtcheff) (morreu em 1322) são todos personagens que existiram, porém as situações em que aparecem no filme são pouco prováveis de terem acontecido. Tais cléricos aparecem quase sempre acuados e fugidios. Acreditam em seus ideais mas temem a inquisição. Em parte seus ideais permanecem, em parte foram esquecidos.
Os enviados do papado, que na época estava em Avignon, são: Bernardo Gui (F. Murray Abraham), inquisidor que realmente existiu e foi importante na consolidação da inquisição; Jerome of Kaffa (Franco Valobra) outro bispo que realmente teria existido; e cardeal Bertrand (Lucien Bodard) o cardeal de Avignon entre 1280 e 1348-9. Tais personagens apresentam o lado da centralização do poder papal na época, seus posicionamentos e comportamentos demonstram tal perspectiva.  
Por fim, aparecem os personagens hereges, Remigio de Varagine (Helmut Qualtinger) e Salvatore (Ron Perlman). Ambos pertenciam a uma seita denominada Dolcinianos, assim chamados porque seguiam os ensinamentos do Frei Dolcino. No livro Remigio descreve detalhadamente a fisionomia e caráter de Frei Dolcino, inclusive descrevendo seu suplício como algo terrível. Foi uma manifestação típica do norte da Itália que manteve em certa medida proximidade com os cátaros. Eram inicialmente franciscanos que se propuseram a ir além dos ensinamentos mais diretos do franciscanismo. (PENITENZIAGITE!).
A garota (Valentina Vargas) aparece com ultimo personagem, que não se encaixa em nenhum dos grupos. Quase sem importância para os cléricos será essencial para Adso.
4. O romance de Umberto Eco é recheado de intertextualidades, referências a outros textos que formam uma espécie de mosaico de citações que se reorganizam de forma nova. Em cada passagem do texto é possível encontrar referências ocultas, como passagens secretas, que somente aqueles que tiveram contato com outros textos conseguem enxergar. Como um jogo de esconde e esconde, o labirinto e a diversão do romance é o próprio texto e suas referências. Buscar intertextualidades é uma diversão à parte nessa bela história.
O primeiro contato interessante nesse sentido é de Alighiero Chiusano e o seu livro L’ordalia, um romance ambientado na época medieval que tem o mesmo estilo de o nome da rosa e foi considerado o seu grande inspirador. Outros dois textos muito diretamente relacionados ao romance são dos textos de Conan Doyle, e seu Sherlock Holmes, modelo típico de investigador moderno, bem como Zadig de Voltaire, em especial quando logo no início do filme afirma que nunca esteve (nunca viu) no mosteiro, mas pelas pistas observadas sabia onde ficava o banheiro. Tais referências porém reaparecem sempre quando William apresenta-se como investigador do caso (Não, não meu caro Adso, é elementar!). Porém sua voz lógica parece sufocada numa sociedade em que os preconceitos e crendices ainda prevalecem, assim, por mais que a estética nos lembre Sherlock,  William está mais próximo de Zadig de Voltaire, que também foi perseguido por saber demais.
Aparecem bem evidenciados os contatos com filósofos antigos, em especial, os debates sobre a filosofia de Aristóteles, o filósofo que abalou aquele período em termos de estrutura de pensamento. Aristóteles não se adaptava ao modelo de pensamento medieval tradicional, por isso era rejeitado. Porém as novas ordens clericais propunham-se a adequá-lo ao cristianismo o que gerava enorme conflito. Outra referência à antiguidade é o labirinto da biblioteca que se assemelha ao labirinto do Minotauro de Creta e a solução de Teseu com o novelo de lã, imitado por Adso devido a sua educação clássica. Esse labirinto aparecerá também na obra de Borges com outro sentido. E a procura por intertextualidades escondidas poderia ser feita num texto a parte, porém citá-las uma a uma é demasiado pretensioso, deixo a tarefa para que cada um faça por si mesmo, e o faça no limite de seus próprios conhecimentos.
Entretanto, nesse filme-romance uma intertextualidade é especial, o autor que aparece com maior influência no conto sem dúvida é Borges, e no limite de minha arrogância tentarei explicitar alguns pontos sobre tal contato. Borges foi cego durante boa parte de sua vida. Pagava pessoas para ler livros para si. Os lia de memória. Tornou-se diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, e admirava alguns temas em especial: labirintos, espelhos e livros. Seu conto "A Biblioteca de Babel" serviu de inspiração para a biblioteca do mosteiro de Eco: "A Biblioteca é composta por um número indefinido, talvez infinito, de galerias hexagonais, com enormes poços de ventilação no meio, cercados por balaustradas baixíssimas". O labirinto da biblioteca é a metáfora do perder-se no conhecimento, talvez remeta a dificuldade que os homens tem nos labirintos do conhecimento humano. Quem pesquisa sempre recorre a um fio condutor, para não se perder no conhecimento. Os pesquisadores novatos sabem disso, assim como Adso. Porém, o labirinto é decifrável através de um enigma em que os números são a resposta. Números no centro do conhecimento, mais uma teoria clássica. Existem muitas teorias sobre o enigma da biblioteca do romance, deixo novamente tal análise e aprofundamento para o leitor curioso. Nesse ponto o livro vai além do filme. Outra das histórias de Borges, "O Segredo", dispõe de um bibliotecário cego.
Outra estratégia de Borges é fazer referência a textos que nunca existiram ou que aparecem com uma revelação fantástica, como em seu conto “do rigor da ciência”. Umberto Eco ao explicar a origem do livro aponta: “No dia 16 de Agosto de 1968 foi-me parar às mãos um livro que se deve à pena de um certo abade de Vallet, Le Manuscript de Dom Adson de Melk, traduzido em francês segundo a edição de Dom J. Mabillo (Aux Presses de l'Abbaye de la Source, Paris, 1984)”. Fato ou não, tal estratégia aguça nossa percepção e curiosidade.
Outro tema recorrente são os espelhos. Para Borges os espelhos exerciam enorme fascinação. Perigosos por multiplicarem os homens. Talvez o objeto mais perigoso do mundo. Fantásticos porque refletem parcialmente nossa imagem, são obscuros e claros. São uma tentativa de nos fazer refletir sobre nós mesmos. “Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não.” (Borges). O espelho dimensiona a finitude do infinito. Agora nos vemos apenas como num espelho, em parte, mas chegara o tempo que veremos face a face, assim imaginava Borges nas palavras de Paulo.
Talvez em seu conto mais genial Borges escreve sobre livros, num conto chamado “O livro”, afirma que assim como os óculos são a extensão dos olhos e a espada do braço, “os livros são a extensão da memória e da imaginação”. Essa oposição é muito ressaltada no romance de Umberto Eco. Mais um instrumento para William. Borges lembra “uma frase de Santo Anselmo que afirma ‘um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança’ . Isto é o que se pensava dos livros. (‘escrever todas as coisas num livro é deixar uma espada nas mãos de uma criança’ ‘A pena pode ser mais cruel que a espada’.)”. Livros também são perigosos para os que não sabem os usar.
E Borges completa “Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais”. William ao ver tantos livros explode em alegria, está num salão de festas conversando com os maiores homens que a humanidade já produziu.
Os livros para Borges são o tesouro do passado. “Em César e Cleópatra de Shaw [dramaturgo irlandês que recusou o prêmio Nobel de literatura de 1925], quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria, os livros são descritos como a memória da humanidade”. O texto de Shaw, porém, não é tão entusiasta com tal memória da humanidade. Borges talvez brinque, talvez minta, talvez ironize, de qualquer sorte o fato é que tal memória deveria ser destruída.
THEODOTUS (filósofo da corte de Cleópatra)..A biblioteca de Alexandria está pegando fogo.
CESAR. Isto é tudo?
THEODOTUS Tudo? Cesar: Voce quer passar para a posterioridade como um bárbaro soldado que ignora o valor dos livros?
CESAR. Theodotus, Eu sou um autor, e digo-lhe é melhor que os egipícios possam realmente viver suas próprias vidas do que simplesmente imaginá-las com a ajuda dos livros.
THEODOTUS Cesar: Somente uma a cada dez gerações a humanidade ganha um livro imortal. ....Sem a história (escrita), a morte o nivelará a um simples soldado.
CESAR. A morte virá em de qualquer modo. Eu não peço um túmulo melhor.
THEODOTUS. O que está queimando é a memória da humanidade.
CESAR. Uma memória vergonhosa. Deixe-a queimar.
(Bernard Shaw)

E venerável Jorge, uma imagem do lado obscuro de Jorge Luis Borges, deixa essa memória miserável da humanidade, literalmente, queimar! Essa é a conclusão de venerável Jorge ao não aceitar que a memória da humanidade pudesse trazer algo que não fosse “adequado” a sua própria imagem. (William: Aristóteles dedicou o segundo livro da poética à comédia... como instrumento da verdade. Jorge: Você leu essa obra? William: Claro que não. Está desaparecida há séculos. Jorge: Não está não! Ela nunca foi escrita!). Realmente o segundo livro da poética de Aristóteles foi perdido. Sabe-se de sua existência mas nunca se encontrou tal texto. (William exclama: Quantas salas mais? Quantos livros mais?) Quantos livros perdidos no passado. Muitos. Muitos perdidos de propósito. A idade média é o grande filtro para o conhecimento da antiguidade. (Ninguém deveria ser proibido de consultar estes livros.) Mas por que proibidos? (É porque contêm uma sabedoria diferente da nossa... e idéias que nos fariam pôr em dúvida... a infalibilidade da palavra de Deus. E a dúvida, Adso, é inimiga da fé.). A imagem da antiguidade sempre será distorcida pelas lentes do medieval.
Por fim, conhecer um livro tem funções diferentes para William, que quer descobrir novos conhecimentos, e para Jorge. A alegria de William ao encontrar os livros é a continuação da imaginação, das possibilidades, a tristeza de Jorge é a continuação da memória. (Na sabedoria há tristeza. Quem amplia seu conhecimento... amplia também o seu pesar). Para Jorge a cegueira é a única solução para uma vida recheada de livros. (Que nós voltemos ao que éramos, e deveria ser sempre o ofício deste mosteiro: a preservação do conhecimento. Preservação, eu disse. Não perscrutação... porque não existe progresso na história do conhecimento... meramente uma contínua e sublime recapitulação.) Por isso, para Jorge o livro era apenas um sucedâneo da memória.
5. O filme refere-se constantemente aos medos medievais que Jean Delumeau apresenta em seu livro “A história dos medos no ocidente”. O medo da fome aproxima os miseráveis do mosteiro e suas doações pelas portinholas de lixo, para viver a partir dos restos lançados. Para os miseráveis, ao lado do mosteiro, o principal evento de cada dia é sempre a busca pela comida. O medo de doenças faz com que o boticário tenha sempre soluções para cada um dos casos. Ainda não se viveu a experiência da peste negra, mas as doenças sempre espreitam.
O fim do mundo aparece como explicação para os eventos que não conseguem encontrar sentido lógico. ("Após o temporal de granizo, com a segunda trombeta..." "'o mar tornou-se sangue.") e o demônio aliado à escuridão são os responsáveis pelas tragédias vivenciadas. O gato preto simboliza o demônio e ao mesmo tempo a negativação da mulher.
O medo da mulher já aparece na voz de Ubertino de Casalle  “Quando uma fêmea... por natureza tão perversa... torna-se sublime por santidade... então ela pode ser. Bonitos são os seios... que alimentam um só bebê.”. Porém a culpabilidade da moça no caso das mortes, como bruxa, demonstra bem o problema. A homossexualidade também é ressaltada na fala de Ubertino de Casalle  “Havia alguma coisa de feminino...alguma coisa de diabólico... no jovem que morreu... Ele tinha os olhos de uma moça... buscando uma relação com o demônio.”
6. O poder da inquisição é outro fato apresentado no filme. Logo a primeira cena aparece um mastro queimado, o que dá a entender o domínio da inquisição da época, as brasas ainda estavam acessas. As cenas de tortura chocam pela crueldade e a confissão forçada também demonstra o poder e a loucura da inquisição.
Dos diversos grupos perseguidos pela inquisição os Franciscanos espirituais (que acreditavam que Jesus e os discípulos não tinham propriedades), e a heresia dos Dolcinianos são os destacados. (Mas também diziam que todos deviam ser pobres. Assim, matavam os ricos. Sabe, Adso... o passo entre visão elevada e o frenesi pecaminoso... é bem curto). O frenesi pecaminoso, entretanto, não era necessária ou exclusivamente dos hereges, mas da própria inquisição.
A inquisição impunha a impossibilidade de fuga. Não se foge, tenta-se desaparecer. William afirma a Ubertino “Eu me empenhei em ser esquecido!”. No mundo real, realmente Guilherme de Ockham foi perseguido pela inquisição por suas idéias. Defendeu os ideais franciscanos e considerou a posição do papa heresia, para sobreviver fugiu para Bavária aonde, sob proteção do imperador do Sacro império Romano Germânico permanece escondido. Na história “oficial” William teria fugido um ano após esses acontecimentos, em 1328 para proteção do imperador.
A inquisição bloqueava a possibilidade de contestação (Sei também que quem contesta o veredicto... de um inquisidor é culpado por heresia.) e William descreve sua vida como importante relato de tal acontecimento. (William: Eu fui inquisidor, mas no começo... quando a Inquisição se esforçava para guiar, não para punir. Uma vez presidi o julgamento de um homem... cujo único crime fôra traduzir um livro grego... que conflitava com a Sagrada Escritura. Bernardo Gui queria condená-lo como herege. Eu absolvi o homem. Gui me acusou de heresia por tê-lo defendido. Apelei para o Papa. Fui preso... torturado... e me retratei. Adso: O que houve então?  William: O homem foi queimado... e eu ainda estou vivo). Num mundo dominado pela desrazão o uso da razão é perigoso. O grande defeito de William é que ele pensa demais. (O mestre raciocina demais.)
7. Mas afinal de contas o que os padres estavam fazendo naquele mosteiro? Pretendiam realizar uma disputatio. Um debate sobre a pobreza da igreja.
Vossa Eminência, veneráveis irmãos... finalmente nos encontramos para o esperado debate! Todos viajamos longas distâncias... para pôr fim à disputa...que tanto abalou a unidade... da Santa Madre Igreja. Bons cristãos de toda parte... voltam seus olhos a estes veneráveis muros... aguardando ansiosos nossa resposta à pergunta... ''Cristo possuía ou não... as roupas que Ele usava?''
Queridos irmãos da Ordem Franciscana... nosso Santo Pai, o Papa, autorizou a mim... e a estes servos fiéis a falar em seu nome. A questão não é se Cristo era pobre... mas se a Igreja deve ser pobre! Vocês, Franciscanos, querem ver... o clero renunciar aos seus bens... e entregar suas riquezas. Os abades dissiparam seus tesouros sacros... e entregaram sua terra fértil aos servos. ...privando a Igreja de recursos para combater os céticos... e lutar contra os infiéis.
Esquecem que até o maior monumento ao Nosso Senhor... é um pálido reflexo de Sua majestade e glória. O Evangelho afirma categoricamente... que Cristo possuía uma carteira! É mentira, e você sabe! Por que Nosso Senhor mandou em sete ocasiões seus... discípulos não carregarem nem ouro e nem prata?

A questão de fundo é a propriedade privada, em especial o enriquecimento experimentado pela Igreja durante a baixa idade Média. As doações sustentavam os mosteiros, por outro lado serviam de expropriação da população em geral. (Por aquilo que deste na Terra... recebas cem vezes mais no Céu.). Mitos de generosidade e caridade se perderam durante o período. (Ao distribuir os lixos aos miseráveis William afirma: Outra generosa doação da Igreja aos pobres.). Talvez o mosteiro seja o exemplo de uma sociedade desigual, em que os franciscanos não conseguiam ver Deus. “Acha que este lugar foi abandonado por Deus? Já conheceu um lugar onde Deus se sentiria em casa?” William só pergunta quando tem as respostas, e só responde com perguntas.
8. E talvez o tema amor seja o mais estranho de todo o filme. Antes do romantismo, não se reconhece o amor da atualidade no mundo medieval. Antonio Manuel Hespanha lembra que as formas de amor do período medieval eram o amor amicitae e amor concupiscentiae. No primeiro o amor é amor a ordem do mundo, no segundo representa algo mais negativo e carnal para época.
Adso: Mestre... Alguma vez... o senhor já amou?
William: Se amei? -Muitas vezes.
Adso: -Amou?
William: Claro. Aristóteles, Ovídio, Virgílio...
Adso: Não. Eu quis dizer...
William: Não está confundindo amor com luxúria?
Adso: Estou?
William: Não sei.
Adso: Só quero o bem dela. Quero que ela seja feliz. Quero livrá-la da sua pobreza.
William: Nossa!
Adso: -Por que ''nossa''?
William: -Você está amando.
Adso: lsso é ruim?
William: Para um monge traz alguns problemas.
Adso: Aquino não louvava o amor acima de todas as virtudes?
William: Sim, o amor de Deus, Adso. De Deus!
Adso: E o amor da... mulher?
William: De mulher, Tomás Aquino sabia bem pouco. Mas a Escritura é clara. Em Provérbios, a advertência. A mulher se apodera da alma do homem. No Eclesiastes, temos: "Mais amarga que a morte é a mulher".
Adso: Sim, mas o que o senhor pensa, mestre?
William: Eu não tenho o benefício da sua experiência... mas acho difícil me convencer de que... Deus teria criado um ser tão nocivo... sem lhe conceder virtudes. A vida seria tranqüila sem o amor, Adso. Segura... sossegada... e monótona.

9. Adso amava a moça? Por que não ficou com ela? O filme nos faz questionar o nome da rosa, da camponesa. E talvez a maior ironia de todas é que o único personagem do filme que insiste em conhecer nomes era Bernardo Gui, o inquisidor. E nesse sentido, para os modernos, realmente falta um nome. O resgate da história dos oprimidos parece ser essencial ao autor do romance e ao diretor do filme. Talvez esse seja o recado, essa é a contradição.
Porém a intenção de Umberto Eco pode ser mais profunda. A ultima linha do livro apresenta a frase "Stat rosa Pristina nomine, nomina nuda tenemus" que se traduz literalmente como "Da rosa fica apenas o nome, temos nomes vazios". O sentido geral, como assinalou Eco, era que a beleza do passado, agora desaparecido, do qual apenas temos os nomes. Para o romance a identidade da "rosa" perdida poderia ser interpretado de várias maneiras, tais como o livro perdido de Aristóteles, a biblioteca destruída, ou a menina - mas o filme centra-se na última opção na sua própria linha de fechamento. Segundo Eco, “neste mundo imperfeito, as únicas coisas imperecíveis são idéias”. Em suas palavras:
“Desde a publicação de O Nome da Rosa" tenho recebido várias cartas de leitores que querem saber o significado da expressão latina em hexâmetro ao final, e por que esse hexâmetro inspirou o título do livro. Eu respondo que o verso é de “De mundi contemptu” de Bernard de Morlay, um beneditino do século XII, cujo poema é uma variação do "ubi sunt servanda" (mais conhecido mais tarde por Villon do "Mais ou sont les neiges d´antan"). Mas para os topos de sempre (o grande passado, as cidades outrora famosas, as princesas encantadoras: tudo desapareceu no vazio), Bernard acrescenta que todas essas coisas partiriam (somente, ou pelo menos) permanecendo os nomes puros por trás deles. Eu me lembro que Abelardo usou o exemplo da frase "nulla est rosa" para demonstrar como a linguagem pode falar tanto do inexistente como do destruído. E, tendo dito isto, deixo ao leitor para chegar a suas próprias conclusões.”

Para fechar gostaria de repassar duas citações feitas por Borges sobre textos de  Leon Bloy referidas em um de seus contos. A primeira: "Cada homem está na terra para simbolizar algo que ignora e para realizar uma partícula, ou uma montanha, dos materiais invisíveis que servirão para edificar A Cidade de Deus". O que cada homem simboliza no tempo, numa história repleta de nomes vazios? Ninguém sabe. Talvez nunca se saberá.
A segunda: "Não há na terra ser humano capaz de declarar com certeza quem ele é. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas idéias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os iotas e os pontos não valem menos que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e de outros é indeterminável e está profundamente oculta".
Talvez sejamos apenas rosas, talvez não saibamos nossos próprios nomes.