domingo, 6 de fevereiro de 2011

Por que será que os pardais estão se transformando em pombas?

            Leonardo estava a caminho de uma audiência. E no desespero de perder a hora olhou o relógio. Estava muito adiantado, talvez uma hora ou mais. Já se esquecerá de qual foi a última vez que aquilo ocorreu em sua vida. Sobrar tempo era uma expressão quase esquecida em seu vocabulário. Uma expressão usada pelos antigos, talvez os gregos, não tinha se preocupado muito com as aulas de filosofia do primeiro e segundo ano da faculdade de direito para ter certeza.

            Estava diante de uma praça, percebeu que era a praça que ficava em frente a sua ex–universidade. Formara-se a menos de dois anos. Apesar de ter vivido durante cinco anos naquela faculdade não perceberá qual era a aparência da praça. Principalmente pelo lado oposto. Resolveu atravessar a praça, talvez por remorso de nunca tê-la atravessado em toda sua vida.
            No caminho percebeu que no chão se encontravam pombas e pardais comendo restos de comida espalhados por algum admirador de pássaros. Nunca gostou de pombas. Admirava os pardais. Pombas eram animais estranhos, faziam muita sujeira, uivavam ao invés de cantar e eram burras. As pombas geralmente não fugiam dos homens, e apesar de tudo conseguiam andando nunca ser apanhadas. Eram galinhas que sabiam voar. Já os pardais sempre foram selvagens. Sabiam conviver com os homens sem ter contato com eles. Toda a manhã cantavam, mesmo que fosse um canto fraco. Sabiam voar e gostavam de liberdade. Adaptaram-se mas nunca perderam a independência. Enquanto as pombas habitavam o centro burguês da cidade e eram alimentadas os pardais habitavam os bairros e alimentavam-se por conta própria.
            Ao ver pardais se comportando como pombos em uma praça, comendo alimentos e andando, um grande vazio tomou conta de seu peito. Nunca se preocupou com os pássaros pois acreditava que eles tivessem uma natureza própria e imutável. Tentou espantar os pardais os quais gordos fugiam andando, e não se importavam com o ato de revolta de Leonardo.
            Triste sentou-se num banco diante o prédio de sua velha universidade. No dia em que ali ingressara vestia camisa preta com a foto de Che Guevara. Escutava punk rock e sonhava com um mundo mais justo. Olhou-se por um instante. Terno e sapato de marca, não lembrava mais se escutava música, talvez clássica, e os sonhos foram desfeitos. Tornou-se um advogado de futuro, defendendo causas em favor de empresas multinacionais importantes.
            Olhou o relógio outra vez, não se passaram nem mesmo cinco minutos. Não queria lembrar, não queria sentir remorso mas o tempo e as idéias estavam congelados. O que fazer com um adolescente que queria mudar o mundo e foi mudado pelo mesmo? Talvez se não tivesse mudado não seria quem é. Talvez sua namorada o deixasse, talvez...
            Ficou ali a contemplar o prédio da universidade. O mundo encantado onde podia sonhar. O castelo forte para os sonhos de um mundo novo. O local em que se aprende algo mais. Algo mais que não aprendeu e se tornou um advogado a mais. Que sentido teria o de se pensar aquilo? Entrou na faculdade para se tornar um advogado, apesar de nunca ter pensado em se tornar um quando entrou.
            Suas idéias começavam a se contradizer e o seu próprio ser interior gritava. Talvez fosse interessante vasculhar a sua coleção de quadrinhos quando voltasse para casa. Tinha a coleção completa dos “Defensores da Justiça”. Agora entendia o que fez. Entrou nessa profissão pela justiça que desde criança cultivava em seus sonhos. Lutava pela liberdade, pela coragem, pela independência. E ao olhar uma criança perseguindo os pássaros viu que ela não conseguia agarrar as pombas pois andavam muito rápido.
            E dentre os pássaros que fugiam um pardal que estava quase sendo apanhado num gesto de coragem voou. E depois de ter voado uma vez parecia ter redescoberto o vôo. Batia suas assas vigorosamente e voava do prédio da universidade para uma árvore ali próxima sem parar. Talvez tivesse descoberto outra diferença entre os pardais e as pombas. As pombas voavam por necessidade, os pardais voavam porque gostavam de voar.
            O tempo finalmente tinha passado. Foi andando em direção ao tribunal. Não sabia se gostava ainda dos pardais, como podiam ter se transformado tanto em pombas, seriam os pardais parentes das pombas? Talvez fosse melhor ter feito faculdade biologia. E ao passar ao lado do prédio da universidade se defrontou com dois alunos com a pasta do curso de direito. Vestiam camiseta do Che Guevara. Resolveu não falar nada a eles, iam escolher seus caminhos sozinhos. Olhou para cima das árvores e viu um pardal voando e murmurou: — É realmente eles gostam de voar...

(Texto de minha autoria em março de 1999, quando iniciava o curso de Direito na UFPR).