quinta-feira, 5 de abril de 2012

Teoria Geral do Direito - Antropologia como marco interdisciplinar


Por que estudar “Antropologia”?







O conhecimento antropológico trata, em suas duas grandes correntes, da esfera biológica e cultural do homem. Na vertente biológica interessa a questão da perícia forense. Nesse caso a arqueologia desenvolve o olhar investigativo. Tal perspectiva é essencial para profissões jurídicas ligadas à polícia judiciária e a perícia médico-legal. Para tal perspectiva, inclusive, existe a disciplina Medicina Legal, geralmente ministrada no último período do curso de Direito.
Já a segunda vertente, a antropologia cultural (ou social), tem por objetivo a análise das culturas. Nessa perspectiva a Antropologia ajuda a entender a diversidade do mundo e a importância de tal diversidade para o Direito. Um caso recente chama atenção e deve ser destacado. Estamos falando do caso das charges do profeta Maomé.

Extraído de Folha On-line http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u92367.shtml  07/02/2006 - 15h24

Protestos contra charges do profeta Maomé deixam 9 mortos
da Folha Online

A polícia afegã matou quatro manifestantes nesta terça-feira em protestos contra a publicação de charges do profeta Maomé em jornais europeus, que provocaram uma profunda crise entre países muçulmanos e ocidentais.  Policiais abriram fogo contra uma multidão que tentava invadir uma base das tropas de paz da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que abrigava soldados noruegueses, matando quatro pessoas. Ao menos nove pessoas já morreram devido às violentas manifestações ligadas à publicação das charges-- uma na Somália, uma no Líbano e sete no Afeganistão. Tropas britânicas foram enviadas à cidade de Maymana (noroeste) para garantir a segurança na área, depois que manifestantes atacaram a base da Otan com tiros e granadas.

Reuters - Manifestante segura exemplar do Alcorão em protestos contra charges em Hebron

"A polícia foi obrigada a abrir fogo. Algumas pessoas tentavam causar distúrbios e prejudicar a segurança", afirmou Azim Hakimi, porta-voz do Departamento de Segurança da Província. "Algumas pessoas usavam armas." Além dos quatro mortos, outras 18 pessoas ficaram feridas.
Capital
Na capital Cabul, policiais utilizaram cassetetes para dispersar uma multidão, que atirava pedras contra o escritório da missão diplomática dinamarquesa, perto do prédio do Banco Mundial. A segurança foi reforçada nas últimas 24 horas em Cabul, que reúne cerca de 3.000 diplomatas estrangeiros. Mais de 3.000 manifestantes atiraram pedras contra prédios do governo e contra uma base das tropas de paz italianas em Herat (oeste), sem deixar feridos. Cerca de 5.000 pessoas entraram em confronto com a polícia em Pulikhumri (norte de Cabul), danificando janelas e veículos, segundo a polícia.
Paquistão
Milhares de manifestantes realizaram protestos no noroeste do Paquistão, perto da fronteira com ao Afeganistão, nesta terça-feira.  Cerca de 5 mil muçulmanos fizeram uma passeata em Peshawar, que é governada por uma coalizão islâmica formada por diversos grupos pró-Taleban. [grupo extremista islâmico deposto por uma coalizão liderada pelos EUA no final de 2001, que controlava mais de 90% do Afeganistão]. Os protestos no Paquistão foram os maiores desde o início da controvérsia. Ao menos 10 mil pessoas se manifestaram em Dacca, capital do Bangladesh, e dezenas de milhares foram às ruas na capital da Nigéria, Abuja. Em Srinagar, na Índia, policiais atiraram bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os centenas de manifestantes, ferindo ao menos seis pessoas. 
AP Manifestantes queimam bandeira dos EUA em protesto contra charges na Cisjordânia

Irã
No Irã, dezenas de estudantes islâmicos se aglomeraram em frente à Embaixada da Dinamarca em Teerã com pedras nas mãos. Cerca de 20 pessoas conseguiram escalar o muro do prédio, onde uma árvore foi incendiada. Protestos também ocorreram no Egito, Iêmen, em Gaza, no Azerbaijão e na Croácia-- mais recente país a aderir à onda de protestos contra as charges, publicadas pela primeira vez em um jornal dinamarquês em 30 de setembro. As caricaturas foram reproduzidas em jornais da África do Sul, Alemanha, Austrália, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, França, Fiji, Holanda, Hungria, Iêmen, Itália, Japão, Jordânia, Malásia, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Suíça e Ucrânia. A tradição islâmica proíbe a reprodução de imagens de seus profetas.

Veja abaixo cronologia da polêmica desencadeada devido à exibição das charges:

30.set.2005 - O jornal dinamarquês "Jyllands-Posten" publica 12 charges do profeta Maomé
20.out.2005 - Embaixadores muçulmanos reclamam ao premiê dinamarquês
10.jan.2006 - O jornal norueguês "Magazinet" republica as charges
26.jan.2006 - A Arábia Saudita retira seu embaixador e boicota produtos dinamarqueses. O tablóide jordaniano "Al Mehwar" publica as charges
30.jan.2006 - Homens armados atacam o escritório da União Européia em Gaza, exigindo um pedido de desculpas
31.jan.2006 - O jornal dinamarquês pede desculpas
1º.fev.2006 - As charges são publicadas nos periódicos "Die Welt" (Alemanha), "France Soir" (França), "La Stampa" (Itália), "El Periódico" (Espanha) e "Volkskrant" (Holanda)
2.fev.2006 - A revista semanal jordaniana 'Shihan' publica três charges. O premiê dinamarquês tenta acalmar os ânimos aparecendo na TV árabe. Três jornais suíços publicam as charges
3.fev.2006 - Corte da África do Sul proíbe a publicação das charges. Protestos na Embaixada da Dinamarca em Londres. Manifestantes atacam uma igreja cristã no Paquistão. Uma das charges é publicada no jornal irlandês "The Star"
4.fev.2006 - Os jornais "Philadelphia Inquirer" (EUA) e "Courier Mail" (Austrália) publicam uma das charges. Manifestantes incendeiam as embaixadas de Dinamarca, Suécia, Noruega e Chile em Damasco. Protestos começam no Afeganistão
5.fev.2006 - O consulado dinamarquês em Beirute é incendiado. Protestos ocorrem na Nova Zelândia e no Egito
6.fev.2006 - Protestos em quatro cidades indonésias, Viena, Istambul e Bancoc. Jornais de Ucrânia, Bulgária e Romênia publicam as charges. Protestos deixam ao menos cinco mortos.
Com agências internacionais


Extraído de Folha On-line http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u104458.shtml 07/02/2007 - 10h32

França inicia julgamento por publicação de caricaturas de Maomé
da Efe, em Paris

O Tribunal Correcional de Paris abriu nesta quarta-feira, em meio a uma grande expectativa, o julgamento pela publicação de várias caricaturas do profeta Maomé pelo semanário satírico francês "Charlie Hebdo". Um público numeroso se amontoava na porta da sala judicial, em meio a uma notável presença policial e de jornalistas, alguns deles da imprensa árabe e da Dinamarca, primeiro país onde foram publicadas as caricaturas que foram objeto de controvérsia. O julgamento é resultado de uma denúncia apresentada pela União de Organizações Islâmicas da França e pela Mesquita de Paris, que alegam que se trata de um possível delito de "injúrias públicas contra um grupo de pessoas em razão de sua religião". As caricaturas foram divulgadas em uma edição especial do "Charlie Hebdo", de fevereiro de 2006, que dedicou onze de suas dezesseis páginas aos desenhos de Maomé que o jornal dinamarquês "Jyllands-Posten" publicou em setembro de 2005. Uma charge na capa do semanário francês mostrava Maomé, que chorava e dizia que "é duro ser amado por tolos". No interior da publicação, havia desenhos do profeta com um turbante do qual saía o pavio de uma bomba e outro no qual orientava os terroristas suicidas a não se matarem mais porque já não havia mais virgens no paraíso. O reitor da Mesquita de Paris e presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Dalil Boubakeur, disse que o objetivo da denúncia é criar uma barreira judicial "para proteger os muçulmanos dos abusos humilhantes". A imprensa francesa dedica hoje amplo espaço ao julgamento e o jornal "Libération" reproduz as caricaturas que são o centro da controvérsia judicial. Na imprensa, foi divulgada uma publicidade paga pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) com a frase: "Com 'Charlie Hebdo', nos negamos a nos calar". "Não podemos esperar que nos tirem a informação para a defendermos", diz o anúncio, que mostra um homem que tenta gritar, enquanto uma mão tenta tapar sua boca. O secretário-geral da RSF, Robert Menard, que assiste ao julgamento, afirmou que "os que fizeram a denúncia se equivocam, pois querem dar a impressão de que estão sendo tratados de forma diferente, mas o Islã é uma das muitas religiões e deve ser tratada da mesma forma que as demais". Menard lembrou o caráter satírico da publicação denunciada e ressaltou que a França é um país laico, onde a religião é, em algumas ocasiões, "alvo de brincadeiras". O dirigente da RSF disse que a liberdade de expressão é "difícil de aceitar" e disse acreditar que a publicação não será condenada, porque "se corre o risco de que seja instaurada uma espécie de autocensura nos meios". Na sua opinião, o reitor da mesquita parisiense se viu obrigado a tomar essa iniciativa "por medo de ser ultrapassado por uma parte da comunidade islâmica mais intransigente".

Exercícios

1) Explique os motivos que levaram ao incidente das caricaturas do profeta Maomé.

2) Você acredita que os jornais que reproduziram tais caricaturas tinham conhecimento do fato ou não?

3) Qual a importância do conhecimento de culturas diversas para o jurista.

4) Qual sua opinião sobre o caso das charges? Como você julgaria o caso?


Assim como o conhecimento histórico, o conhecimento antropológico é quase totalmente desconhecido dos juristas. Esse problema acaba por acarretar situações limites e atitudes de preconceitos culturais O conhecimento antropológico possibilita múltiplas visões de mundo e maior capacidade do jurista para entender a diversidade que caracteriza a sociedade. Evitando assim o que alguns autores denominam de visão etnocêntrica.

Texto complementar

Extraído de: ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. pp. 08-16.

PENSANDO EM PARTIR
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas.
Assim, a colocação central sobre o etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e razões, enfim, pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.
Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.
Este choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças. Grosso modo, um mal-entendido sociológico. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!
O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo resulta num considerável reforço da identidade do “nosso” grupo. No limite, algumas sociedades chamam-se por nomes que querem dizer “perfeitos”, “excelentes” ou, muito simplesmente, “ser humano” e ao “outro”, ao estrangeiro, chamam, por vezes, de “macacos da terra” ou “ovos de piolho”. De qualquer forma, a sociedade do “eu” é a melhor, a superior. representada como o espaço da cultura e da civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A sociedade do “outro” é atrasada. E o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem.
O selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro” é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.
O que importa realmente, neste conjunto de idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma única sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos.
A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. Existe realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.
Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.
Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.
Em segundo lugar, esta estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”, como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann Von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada “civilização ocidental” e as sociedades tribais. Isso lembra o comentário, tristemente exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano, que, de tanto ouvir absurdos sobre o índio, seja em casa, seja nos livros didáticos, seja na indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o índio é o maior amigo do homem”.
Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que o “outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, são apenas uma representação, uma imagem distorcida que é manipulada como bem entendemos. Ao “outro” negamos aquele mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete. Também, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simpático, inteligente e super-poderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso pensar dele o que quiser.
Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”, os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. Aliás, “brabos” e “mansos” são dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o “humor” de determinados animais e o “estado” de várias tribos de índios ou de escravos negros.
A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes dois pólos, sendo denegrida ou exaltada – como o marciano – ao sabor das intenções que se tenha. Isto não só ao longo da história, mas também em diferentes contextos no presente. A expressão “fulano é muito louco” pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da história o louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi feito portador de uma palavra sagrada e respeitada.
Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos.
Na nossa chamada “civilização ocidental”, nas sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do “outro”. O caso dos índios brasileiros é bastante ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já identificaram determinadas visões básicas, determinados estereótipos, que são permanentemente aplicados a estes índios.
Eu mesmo realizei, há alguns anos, um estudo sobre as imagens do índio nos livros didáticos de História do Brasil. Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio, pois são lidos e, mais ainda, estudados por milhões de alunos pré-universitários nos mais diversos recantos do país. Alguns destes livros alcançam tiragens altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições. Através deles circula um “saber” altamente etnocêntrico – honrosas exceções – sobre os índios.
Os livros didáticos, em função mesmo do seu destino e de sua natureza, carregam um valor de autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da verdade. Sua informação obtém este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser visto como algo “rigoroso”, “sério” e “científico”. Os estudantes são testados, via de regra, em face do seu conteúdo, o que faz com que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Com ela se fixam também imagens extremamente etnocêntricas.
Alguns livros colocavam que os índios eram incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por serem indolentes e preguiçosos. Ora, como aplicar adjetivos tais como “indolente” e “preguiçoso” alguém, um povo ou uma pessoa, que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que não é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.
Outro fato também interessante é que um número significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os índios andavam nus. Este “escândalo” esconde, na verdade, a nossa noção absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e esconder. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das dificuldades de definir o sentido de um objeto – o relógio ou o arco – fora dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada garante que os índios andem nus a não ser a concepção que eles mesmos teriam de nudez e vestimenta.
Assim, como o “outro” é alguém calado, a quem não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz, manipulado de acordo com desejos ideológicos, o índio é, para o livro didático, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras palavras, o índio é “alugado” na História do Brasil para aparecer por três vezes em três papéis diferentes.
O primeiro papel que o índio representa é no capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como “selvagem”, “primitivo”, “pré-histórico”, “antropófago”, etc. Isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram “superiores” e “civilizados”.
O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é o de “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas-virgens”, etc., para fazer parecer que os índios é que precisavam da “proteção” que a religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. E no capítulo “Etnia brasileira”. Se o índio já havia aparecido como “selvagem” ou “criança”, como iriam falar de um povo – o nosso – formado por portugueses, negros e “crianças” ou um povo formado por portugueses, negros e “selvagens”? Então aparece um novo papel e o índio, num passe da mágica etnocêntrica, vira “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor à liberdade”.
Assim são as sutilezas, violências, persistências do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A “indústria cultural” – TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rádio – está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é criado sistematicamente um enorme conjunto de “outros” que servem para reafirmar, por oposição, uma série de valores de um grupo dominante que se auto-promove a modelo de humanidade.
Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de resquícios de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os “empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”, os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os “velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um “saber”, baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.
Mas, existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de relativização. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
A nossa sociedade já vem, há alguns séculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao “outro”, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de “senso comum”, o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais comuns. Assim, a diferença não se equaciona com a ameaça, mas com a alternativa. Ela não é uma hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”.
Assim, gostaria, agora, de acompanhar alguns movimentos pelos quais passou a Antropologia neste jogo de refletir sobre a diferença. Entender alguns movimentos deste jogo é acompanhar a superação do etnocentrismo na arena do intelecto e da razão e na arena da emoção e do sentimento. Acredito até que, num certo nível, esta superação que ocorre na ciência que é a ponta de lança do conhecimento do “outro” possa, no plano da sociedade mais geral, ser traduzida num humanismo de olhar mais conseqüente. A diferença das escolhas humanas se fixa, no conhecimento antropológico, no mínimo, como alternativa e testemunho de muitos “outros”, aqui e pelo mundo afora, cujas formas de existência serão sempre a presença do humano em sua singularidade.
O percurso que, na Antropologia, busca a superação do etnocentrismo implicou diferentes movimentos e pode, com maior ou menor grau de dificuldade, ser observado a partir de vários ângulos. Optei por traçar o caminho em torno de algumas visões do conceito de “cultura” dentro da Antropologia. Alguém já disse que o antropólogo é aquele que pensa sobre as questões da cultura humana. De fato, seguindo a pista dada pelos diferentes conceitos de cultura de que a Antropologia dispõe perceberemos como esta foi vista de maneiras mais etnocêntricas que cederam espaço a outras visões mais relativizadoras.
Antes, porém, de ver isto tudo – os conceitos de cultura nas teorias formais da Antropologia –, convém fazer rápida passagem pelo panorama de uma época que acho ter sido fundamental para a constituição de um “sentimento” da Antropologia. Trata-se dos séculos XV, XVI e XVII com suas navegações, expedições, espantos, colonizações, alucinações, sacações e aberturas. E um momento básico de encontro com o “outro”. O “velho” mundo buscando coisas cujas dimensões talvez nem soubesse. O “novo” mundo um tanto indefeso frente ao furacão que começava a envolvê-lo. Povos assustados com o olhar o “outro” frente a frente. Momento marcante a exigir que se começasse a pensar a diferença, porque esta já se impunha na força de sua radicalidade.