sábado, 10 de maio de 2014

Comentário sobre o Documentário O poder da Arte - William Turner


Comentário sobre o documentário

Simon Schama's
Power of Art


William Turner


Aproveito essa oportunidade para fazer um pouco de terapia. Nos últimos dias me peguei algumas vezes sem dormir. As palavras podem ser os maiores espinhos nos travesseiros. Não que minha consciência esteja pesada ou algo assim, não é disso que se trata. Mas da necessidade de libertar os pensamentos. Presos por um comedido ato de razão. Verbalizar o que sentimos é um ato de libertação.


Para iniciar uma fala sobre Turner, um pintor que confesso pouco me importei em pesquisar antes da proposição desse evento, o que me deixa grato aos organizadores, vou lembrar que uma idéia importante de outro pintor. Trata-se de um pensamento do pintor Paul Klee. Esse nos  advertia que “O que nós vemos é apenas aparência. A arte não reproduz o visível, ela torna visível”. 

Turner pintava com os dedos. Nada mais instintivo. E algumas vezes, quando recorremos aos instintos, temos oportunidades para descobrir de nossos olhos certos mantos sociais. Nem sempre esses mantos conseguem ser retirados por inteiro. Às vezes sequer podem ser retirados. Assim a arte é apenas uma oportunidade para enxergar o que está oculto.

Turner deixava fluir na tela suas impressões instintivas. Trabalha e muitas vezes exaustivamente trabalha cores e formas. Talvez por isso, por lidar com seus instintos, mesmo não se propondo a ser um revolucionário, não consegue deixar que seus quadros simplesmente se esbaldem em harmonia. Em nitidez. Nem sempre para tornar-se visível é preciso tornar-se nítido. Para tentar explicar essa frase quase desconexa escolhi quatro quadros que tornam visível, ou apenas um pouco mais visível, certos aspectos que Turner expunha em sua arte.

Vamos ao primeiro. Trata-se do Campo de Waterloo. (1818)


Se J. Louis David (no documentário anterior que debatemos) apresentava juramento dos Horácios, Napoleão cruzando os Alpes em seu esplendor, e tantas outras obras, fazendo as pessoas verem a Revolução em sua nitidez racional, a vitória da razão e a grandeza dos heróis, Turner seguiu um caminho diferente. Turner podia mostrar Waterloo em sua Glória. A vitória da Inglaterra contra o ditador Napoleão. As sombras sendo dissipadas pela luz.

Mas a luz não dissipa as sombras. As sombras vencem. A luz contempla ao longe um campo de corpos empilhados. Quase um rosto de luz. Sobre uma montanha de corpos e uma batalha a terminar no horizonte.

Uma tocha ilumina a cena. Mulheres revirando corpos.

Um triunfo feito de mortes, em que apenas aqueles em sua condição oprimida podiam sentir. Afinal, se existe uma grande vencedora em todas as guerras, esse se chama opressão.

Seriam as batalhas espetáculos de Glória? Se a arte pode educar, também pode deseducar. Fazer enxergar aquilo que alguns fazem questão de não ver.
Qual vitória?

Existe algo de errado nesse mundo. Mas o que seria?

O segundo quadro que me chama muito a atenção é o quadro Death on a Pale Horse (1825-30)


A morte... Quem não a teme? Quem não a quer? Isso mesmo. Quem não a quer!

Freud depois de muito olhar para dentro de si encontrou no seu interior o que ele chamou de pulsão de vida e pulsão de morte. Somos atraídos por tudo que multiplica a vida, essa pulsão de prazer, de vida, de júbilo, de satisfação. Essa busca pela vida, que Marcuse chamaria de Eros, nos move a cada dia.

Porém também somos movidos pelo medo de perder a vida. Esse medo chega a crescer tanto em nós que segundo Freud criamos um medo do sofrimento. Fazemos de tudo para não sofrer. E, no limite, a forma final que nos livra do sofrimento é a inevitável morte. Essa pulsão, que nos leva a autodestruição, a repressão dos instintos, a destruir os outros. Assim, muitas vezes, nos entregamos ao destino que nos aguarda. Desejamos a morte. Impulso identificado em práticas Sado-masoquistas. O que Marcuse chamaria de Civilização.

Turner quer que a morte vá embora, mesmo que esteja vindo em sua direção. Pintou o quadro num momento de doença. Mas a venceu. A morte que está fraca em seu cavalo. Que vem mas que não tem forças. A pulsão da vida venceu a pulsão da morte.

Somente um artista muito sensível, que consegue enxergar-se numa longa viagem para dentro de si mesmo, seria capaz de concretizar um quadro assim.

Um quadro sobre o interior de nós mesmos. Um interior não muito belo. Eu não penduraria esse quadro na minha sala, não é confortável enxergar nosso interior de forma tão direta. 

Tornar visível o que está dentro de nós demanda um pouco de realidade, um pouco de simbólico. Mas nada de nitidez.

O terceiro quadro, que nada verdade são quadros, ao menos dois conhecidos chama-se The Burning of the Houses of Lords and Commons, 16th October, 1834 - 1835.


Trata-se de uma mistura de relato histórico e de imagem simbólica. 
Em 16 de Outubro de 1834, ao queimar um material que não era mais utilizado, Algo como “Varas de Contagem para arrecadação de Impostos”, o parlamento inglês acabou sendo sobreaquecido e objetivamente pegando fogo. O incêndio foi o maior que Londres viveu desde o fátido incêndio de 1666.

Mas antes de voltar ao quadro gostaria de lembrar uma passagem de um texto que li faz já algum tempo. É um conto de Jorge Luís Borges sobre os livros. Em determinado momento ele cita a seguinte passagem de "César e Cleópatra" de Shaw [dramaturgo irlandês que recusou o prêmio Nobel de literatura de 1925], quando a biblioteca de Alexandria está queimando, assim como os livros descritos como a memória da humanidade”:

THEODOTUS (filósofo da corte de Cleópatra)  A biblioteca de Alexandria está pegando fogo.
CESAR. Isto é tudo?
THEODOTUS Tudo? Cesar: Voce quer passar para a posterioridade como um bárbaro soldado que ignora o valor dos livros?
CESAR. Theodotus, Eu sou um autor, e digo-lhe é melhor que os egipícios possam realmente viver suas próprias vidas do que simplesmente imaginá-las com a ajuda dos livros.
THEODOTUS Cesar: Somente uma a cada dez gerações a humanidade ganha um livro imortal. ....Sem a história (escrita), a morte o nivelará a um simples soldado.
CESAR. A morte virá em de qualquer modo. Eu não peço um túmulo melhor.
THEODOTUS. O que está queimando é a memória da humanidade.
CESAR. Uma memória vergonhosa. Deixe-a queimar.
(Bernard Shaw)


Uma civilização????

Vergonhosa... deixe-a queimar. 

Isso é tudo.

O quarto quadro é o fantástico “Slavers throwing overboard the Dead and Dying - Typhon coming on ("The Slave Ship")” – 1840


Antes de falar do quadro propriamente dito, acredito que vale a pena relembrar uma cena famosa do filme Amistad [cena próxima aos 6 minutos representa bem o que aconteceu].


Essa cena literalmente é para quem estômago forte. E diria que não é preciso muitos argumentos para explicar o quão abominável é. Basta ter um estômago.

Isso porque a escravidão, e o racismo em geral, é alimentada por um instinto destrutivo. É a pulsão da morte em seu sentido social mais profundo. Somente uma civilização perversa, com sádicos petulantes, tem a arrogância de tentar justificar atos racistas sob a máscara da ironia. Somente nessa civilização de desejo de morte, de segregação, que atos assim podem ser vistos. Torná-los visíveis é arte, isso porque se quer queimá-los, destruí-los. Lembro enfim Benjamin quando diz “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Nossos mortos nos lembram que a cada minuto temos que matar a morte. Vencê-la.

Sobre o quadro. Bem, o navio negreiro se dirige à escuridão, seu destino afinal. Os corpos dilacerados (e como pensar num mundo não dilacerado numa cena tão atroz?) e os monstros das profundezas berram em nossos olhos. A luz lembra o fogo do quadro anterior. Não devemos deixar essa cruel realidade ser esquecida. É preciso lembrá-la. Para que nunca mais exista.

Documentário pode ser visto no seguinte link.


(*) As imagens dos quadros foram adquiridas em pesquisas na internet. Os direitos de uso estão ligados aos seus detentores. Aqui trata-se de ilustração com fins educativos sem fins comerciais.