Comentário sobre o documentário
Simon Schama's
Power of Art
William Turner
Aproveito essa oportunidade para fazer um pouco de terapia.
Nos últimos dias me peguei algumas vezes sem dormir. As palavras podem ser os
maiores espinhos nos travesseiros. Não que minha consciência esteja pesada ou
algo assim, não é disso que se trata. Mas da necessidade de libertar os
pensamentos. Presos por um comedido ato de razão. Verbalizar o que sentimos é
um ato de libertação.
Para iniciar uma fala sobre Turner, um pintor que confesso
pouco me importei em pesquisar antes da proposição desse evento, o que me deixa grato aos
organizadores, vou lembrar que uma idéia importante de outro pintor. Trata-se
de um pensamento do pintor Paul Klee. Esse nos advertia que “O que nós vemos é apenas
aparência. A arte não reproduz o visível, ela torna visível”.
Turner pintava com os dedos. Nada mais instintivo. E algumas
vezes, quando recorremos aos instintos, temos oportunidades para descobrir de
nossos olhos certos mantos sociais. Nem sempre esses mantos conseguem ser
retirados por inteiro. Às vezes sequer podem ser retirados. Assim a arte é apenas uma oportunidade para enxergar o que está oculto.
Turner deixava fluir na tela suas impressões instintivas. Trabalha
e muitas vezes exaustivamente trabalha cores e formas. Talvez por isso, por lidar com seus instintos, mesmo não se
propondo a ser um revolucionário, não consegue deixar que seus quadros
simplesmente se esbaldem em harmonia. Em nitidez. Nem sempre para tornar-se
visível é preciso tornar-se nítido. Para tentar explicar essa frase quase desconexa escolhi quatro
quadros que tornam visível, ou apenas um pouco mais visível, certos aspectos
que Turner expunha em sua arte.
Vamos ao primeiro. Trata-se do Campo de Waterloo. (1818)
Se J. Louis David (no documentário anterior que debatemos) apresentava juramento dos Horácios,
Napoleão cruzando os Alpes em seu esplendor, e tantas outras obras, fazendo as
pessoas verem a Revolução em sua nitidez racional, a vitória da razão e a
grandeza dos heróis, Turner seguiu um caminho diferente. Turner podia mostrar Waterloo em sua Glória. A vitória da
Inglaterra contra o ditador Napoleão. As sombras sendo dissipadas pela luz.
Mas a luz não dissipa as sombras. As sombras vencem. A luz contempla ao longe
um campo de corpos empilhados. Quase um rosto de luz. Sobre uma montanha de corpos e uma batalha a
terminar no horizonte.
Uma tocha ilumina a cena. Mulheres revirando corpos.
Um triunfo feito de mortes, em que apenas aqueles em sua
condição oprimida podiam sentir. Afinal, se existe uma grande vencedora em
todas as guerras, esse se chama opressão.
Seriam as batalhas espetáculos de Glória? Se a arte pode
educar, também pode deseducar. Fazer enxergar aquilo que alguns fazem questão
de não ver.
Qual vitória?
Existe algo de errado nesse mundo. Mas o que seria?
O segundo quadro que me chama muito a atenção é o quadro Death
on a Pale Horse (1825-30)
A morte... Quem não a teme? Quem não a quer? Isso mesmo.
Quem não a quer!
Freud depois de muito olhar para dentro de si encontrou no
seu interior o que ele chamou de pulsão de vida e pulsão de morte. Somos
atraídos por tudo que multiplica a vida, essa pulsão de prazer, de vida, de
júbilo, de satisfação. Essa busca pela vida, que Marcuse chamaria de Eros, nos
move a cada dia.
Porém também somos movidos pelo medo de perder a vida. Esse
medo chega a crescer tanto em nós que segundo Freud criamos um medo do
sofrimento. Fazemos de tudo para não sofrer. E, no limite, a forma final que
nos livra do sofrimento é a inevitável morte. Essa pulsão, que nos leva a autodestruição, a repressão dos instintos, a destruir os outros. Assim, muitas
vezes, nos entregamos ao destino que nos aguarda. Desejamos a morte. Impulso identificado
em práticas Sado-masoquistas. O que Marcuse chamaria de Civilização.
Turner quer que a morte vá embora, mesmo que esteja vindo em
sua direção. Pintou o quadro num momento de doença. Mas a venceu. A morte que
está fraca em seu cavalo. Que vem mas que não tem forças. A pulsão da vida
venceu a pulsão da morte.
Somente um artista muito sensível, que consegue enxergar-se
numa longa viagem para dentro de si mesmo, seria capaz de concretizar um quadro
assim.
Um quadro sobre o interior de nós mesmos. Um interior
não muito belo. Eu não penduraria esse quadro na minha sala, não é confortável
enxergar nosso interior de forma tão direta.
Tornar visível o que está dentro de nós demanda um pouco de
realidade, um pouco de simbólico. Mas nada de nitidez.
O terceiro quadro, que nada verdade são quadros, ao menos
dois conhecidos chama-se The Burning
of the Houses of Lords and Commons, 16th October, 1834 - 1835.
Trata-se de uma mistura de relato histórico e de imagem
simbólica.
Em 16 de Outubro de 1834, ao queimar um material que não era
mais utilizado, Algo como “Varas de Contagem para arrecadação de Impostos”, o parlamento
inglês acabou sendo sobreaquecido e objetivamente pegando fogo. O incêndio foi
o maior que Londres viveu desde o fátido incêndio de 1666.
Mas antes de voltar ao quadro gostaria de lembrar uma
passagem de um texto que li faz já algum tempo. É um conto de Jorge Luís Borges
sobre os livros. Em determinado momento ele cita a seguinte passagem de "César e Cleópatra" de Shaw [dramaturgo irlandês que
recusou o prêmio Nobel de literatura de 1925], quando a
biblioteca de Alexandria está queimando, assim como os livros descritos como a memória da
humanidade”:
THEODOTUS (filósofo da corte de Cleópatra) A biblioteca de
Alexandria está pegando fogo.
CESAR. Isto é tudo?
THEODOTUS Tudo? Cesar: Voce quer passar para a
posterioridade como um bárbaro soldado que ignora o valor dos livros?
CESAR. Theodotus, Eu sou um autor, e digo-lhe é melhor que
os egipícios possam realmente viver suas próprias vidas do que simplesmente
imaginá-las com a ajuda dos livros.
THEODOTUS Cesar: Somente uma a cada dez gerações a
humanidade ganha um livro imortal. ....Sem a história (escrita), a morte o
nivelará a um simples soldado.
CESAR. A morte virá em de qualquer modo. Eu não peço um
túmulo melhor.
THEODOTUS. O que está queimando é a memória da humanidade.
CESAR. Uma memória vergonhosa. Deixe-a queimar.
(Bernard Shaw)
Uma civilização????
Vergonhosa... deixe-a queimar.
Isso é tudo.
O quarto
quadro é o fantástico “Slavers throwing overboard the Dead and Dying - Typhon
coming on ("The Slave Ship")” – 1840
Antes de falar do quadro propriamente dito, acredito que
vale a pena relembrar uma cena famosa do filme Amistad [cena próxima aos 6 minutos representa bem o que aconteceu].
Essa cena literalmente é para quem estômago forte. E diria
que não é preciso muitos argumentos para explicar o quão abominável é. Basta
ter um estômago.
Isso porque a escravidão, e o racismo em geral, é alimentada
por um instinto destrutivo. É a pulsão da morte em seu sentido social mais
profundo. Somente uma civilização perversa, com sádicos petulantes, tem a
arrogância de tentar justificar atos racistas sob a máscara da ironia. Somente
nessa civilização de desejo de morte, de segregação, que atos assim podem ser
vistos. Torná-los visíveis é arte, isso porque se quer queimá-los, destruí-los.
Lembro enfim Benjamin quando diz “O dom de despertar no passado as centelhas da
esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os
mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
cessado de vencer”. Nossos mortos nos lembram que a cada minuto temos que matar
a morte. Vencê-la.
Sobre o quadro. Bem, o navio negreiro se dirige à escuridão,
seu destino afinal. Os corpos dilacerados (e como pensar num mundo não
dilacerado numa cena tão atroz?) e os monstros das profundezas berram em nossos
olhos. A luz lembra o fogo do quadro anterior. Não devemos deixar essa cruel
realidade ser esquecida. É preciso lembrá-la. Para que nunca mais exista.
(*) As imagens dos quadros foram adquiridas em pesquisas na internet. Os direitos de uso estão ligados aos seus detentores. Aqui trata-se de ilustração com fins educativos sem fins comerciais.