quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Espaço e tempo: ciências humanas e ciências sociais

Espaço e tempo: Ciências naturais e Ciências Sociais






O problema é perceber o conhecimento produzido pelas Humanidades como Ciência. Seria possível comparar o conhecimento produzido pela Física, Química ou Biologia com o conhecimento produzido pela História, Antropologia ou Direito?

(1) MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do Direito. Conceito, objeto e método. Rio de Janeiro: Forense, 1982. (pp. 71-8)

CIÊNCIAS SOCIAIS E CIÊNCIAS NATURAIS

A especificidade das ciências sociais é hoje um fato aceito na maioria dos círculos científicos e acadêmicos. No entanto, inúmeros foram os obstáculos que os seus fundadores tiveram de enfrentar para conferir às ciências sociais estatuto científico e assegurar-lhes credibilidade, quer no que tange às suas elaborações teóricas e metodológicas, quer no que toca às suas aplicações práticas.' Esses obstáculos se traduziram - e ainda hoje persistem, embora em escala bem menor - de um lado na dúvida generalizada entre aqueles que lidavam com as chamadas ciências naturais, de que um objeto tão cambiável como a sociedade pudesse prestar-se a estudos de natureza científica; e do outro nas próprias dificuldades que os cientistas sociais encontraram para definir seus campos específicos de investigação, para elaborar sistemas metodológicos adequados e sobretudo para estabelecer os princípios teóricos a partir dos quais pudessem ser constituídas disciplinas científicas.
A Sociologia, que particularmente nos interessa neste capítulo como a ciência dos fatos sociais estudados em sua generalidade, proveio, como as demais ciências, do tronco comum da Filosofia. Ela nasceu com o positivismo de COMTE, retomado posteriormente por DURKHEIM. Dentro de sua visão positivista inicial, a Sociologia partiu do princípio de que não havia qualquer diferença qualitativa entre os fenômenos naturais e os fenômenos sociais,  os quais constituiriam realidades absolutamente autônomas e objetivas e conseqüentemente seriam passíveis de uma investigação rigorosamente científica, dentro dos cânones apregoados pelo positivismo. Daí a regra estabelecida por DURKHEIM, de que os fatos sociais deveriam ser analisados como coisas. Para o naturalismo que caracteriza a doutrina positivista, a única distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais reside, portanto, na especificidade de seus respectivos objetos. As primeiras se ocupariam dos fenômenos da natureza e as segundas tentariam descrever as realidades sociais, mas ambas fariam uso do método científico, comum a todas as ciências, e, por conseguinte, estariam aptas a elaborar teorias rigorosamente científicas sobre os seus respectivos objetos de estudo. Esse ponto de vista foi retificado por WEBER, através de sua sociologia compreensiva, e por MARX, com a concepção do materialismo histórico, os quais vieram desmistificar o valor do objeto como fator exclusivo de distinção entre as ciências, chamando atenção para a importância dos enfoques teóricos e problemáticos como fatores distintivos entre as diversas disciplinas científicas. Para WEBER, a aplicação sociológica não pode ser puramente naturalistica, limitando-se apenas a descrever os atos exteriores do comportamento humano e ignorando o sentido de cada atividade ou relação. As ciências sociais devem procurar um conhecimento integral do homem, ainda que dentro de determinada perspectiva. É por isso que a pesquisa do sentido das ações humanas deve mesmo preceder as relações de causalidade que possam determiná-las.
Em sua definição de Sociologia, estão bem claros esses princípios: "Chamamos Sociologia (e é neste sentido que tomamos este termo de significações as mais diversas) uma ciência cujo objetivo é compreender pela interpretação (...) a atividade social, para em seguida explicar causalmente o desenvolvimento e os feitos dessa atividade".
A distinção que o positivismo estabelece entre as ciências, tomando como critério apenas o objeto de que cada uma se ocupa, é bastante precária e insuficiente. E isto porque não só existem ciências, como a Matemática e a Lógica, às quais não corresponde nenhum objeto material ou empírico, como também os objetos materiais, via de regra, são passíveis de análise por parte de várias ciências, trabalhando em conjunto ou separadamente. Os corpos celestes, por exemplo, são estudados tanto pela Astronomia como pela Física ou pela Química. Nas ciências sociais então, em virtude de sua complexidade, os fenômenos apresentam tal diversidade de dimensões, que, em muitos casos, podem constituir objeto de estudo de qualquer delas. O crime, por exemplo, é um fenômeno que permite análise sob os mais variados prismas: sociológico, econômico, jurídico, político, moral, histórico, religioso etc., podendo, portanto, constituir objeto de uma pluralidade de ciências.
O que caracteriza as ciências, conseqüentemente, é muito mais o enfoque teórico sob o qual cada uma procura explicar a realidade, do que os objetos concretos de que se ocupam, ou mesmo os métodos que empregam. De fato, cada disciplina científica estuda a realidade a partir de um referencial teórico que permite ao pesquisador construir não apenas seus métodos de trabalho, mas também o próprio objeto a ser investigado. É em virtude desse referencial teórico, peculiar a cada ciência, que se torna possível a problematização, é uma das etapas mais importantes da elaboração científica. Cada ciência tem problemas específicos a resolver, os quais existem em função da teoria que dirige todo o trabalho de investigação científica.
São as relações entre esses problemas, bem como a coerência do sistema teórico em que eles se inserem, que permitem ao pesquisador construir seu objeto de estudo, selecionando os aspectos da realidade condizentes com o enfoque teórico de cada disciplina científica e fazendo abstração dos demais.
Conforme a lição de WEBER, "o domínio do trabalho científico não é delimitado pelas relações "materiais" dos "objetos", mas antes pelas relações conceptuais dos problemas.  Assim, o pesquisador não vai estudar o objeto em seu estado bruto, mas o objeto que ele mesmo construiu através da seleção dos aspectos mais relevantes aos fins da pesquisa, seleção essa que é comandada pela teoria. Na realidade concreta, os objetos não são, em princípio, pertencentes a qualquer área do conhecimento científico. Cada ciência é que os incorpora, na medida em que os estuda dentro de enfoques teóricos específicos. É por isso que WEBER sustenta que "podem existir tantas ciências quantos pontos de vista específicos no exame de um problema, e nada nos autoriza a pensar já termos esgotado todos os pontos de vista possíveis. Pelas mesmas razões, ele rejeita como estéreis as tentativas dos filósofos ocupados em encontrar um fundamento único para as ciências humanas, reduzindo-as, por exemplo, à Psicologia. Sendo autônomas todas as ciências, em virtude de seus próprios pressupostos, nenhuma serve de modelo às outras". Retomemos o fenômeno crime, que há pouco usamos como exemplo: se estudado pela Economia, será considerado principalmente em suas relações com o sistema de produção circulação e consumo de bens, assim como em suas repercussões sobre a ordem econômica de um modo geral, ficando seus demais aspectos, senão ignorados, pelo menos reduzidos a um papel secundário. É claro que, quanto maior o número de aspectos considerados, maior a possibilidade de a ciência fornecer uma explicação mais profunda sobre os fenômenos.
Ocorre, entretanto, que nenhuma ciência dispõe de referencial teórico que lhe possibilite penetrar em todos os aspectos da realidade. Daí a necessidade sempre crescente de pesquisas de natureza interdisciplinar, em que cientistas de várias especialidades se articulem em torno de aspectos comuns da realidade, para explicá-los à luz de enfoques teóricos conjugados de duas ou mais disciplinas científicas.
(...)
É, portanto, a partir da teoria, através da qual se cons~ troem os métodos e os objetos, que podemos falar de uma distinção entre ciências naturais e ciências sociais. É claro que não estamos negando a importância do objeto na classificação das ciências. Com efeito, a natureza do objeto pode sugerir qual o tipo de enfoque teórico mais adequado para estudá-lo. Mas o objeto não é determinante, inclusive porque só possui sentido em função da teoria que o explica.
Parece-nos que a exposição acima deixa clara a impossibilidade de traçarmos uma fronteira rígida entre as ciências naturais e as sociais, como se elas constituíssem compartimentos absolutamente estanques. Em primeiro lugar, a sociedade não é algo apartado da natureza, visto que existe dentro dela.
Em segundo lugar, o mundo cultural é estreitamente relacionado com o mundo natural, operando inclusive parte da transformação deste último e sendo, por seu turno, condicionado por ele, numa autêntica cadeia de ação e reação. Em terceiro lugar, respeitadas as especificidades de cada ciência, elas possuem muitos princípios teóricos e metodológicos comuns, além de poderem ocupar-se às vezes, sob enfoques diferentes, do mesmo objeto, o que lhes oferece amplas possibilidades de manterem uma interação constante, que implica num enriquecimento mútuo. Importa não esquecer aqui as palavras de MARX e, ENGELS: "(...) enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente".
Vejamos algumas das principais distinções que comumente têm sido apresentadas para diferençar os dois grandes grupos de ciências de que ora estamos tratando:

a) Costuma-se dizer que as ciências naturais são mais precisas do que as sociais, porque conseguem formular leis de caráter universal, ao passo que estas últimas raramente conseguem formular alguma lei, em virtude do caráter pouco geral de suas proposições. Alguns sociólogos americanos, como TALCOTT PARSONS e ROBERT MERTON, considerando o baixo nível de generalização da maioria das teorias sociais, chegaram mesmo a sugerir que a maior necessidade dos sociólogos são as teorias de médio alcance, ou seja, "teorias que tentam explicar tipos particulares de fenômenos, com clareza e concretização suficientes para sugerir um conjunto de hipóteses inter-relacionadas, aplicáveis a vários fenômenos aparentemente diversos". Este critério distintivo em parte é correto, porque a complexidade maior do social em relação ao natural é um sério obstáculo para que as ciências sociais elaborem proposições de um grau muito elevado de generalidade. Por outro lado, cumpre observar que as ciências sociais, de um modo geral, não só em razão da complexidade de seu objeto, mas também pelo fato de terem alcançado autonomia científica em épocas relativamente recentes, encontram-se em certo atraso com relação às ciências naturais, tanto em suas formulações teóricas, como em suas aplicações práticas. Mas não podemos levar a um ponto radical este critério de distinção, a ponto de afirmarmos que as ciências naturais são exatas e as sociais meramente probabilísticas, porque com isso estaríamos ignorando que o caráter essencial de todo conhecimento científico é ser retificável e, conseqüentemente, aproximado. Realmente, como já afirmamos citando POPPER (p. 66, nota 41), uma teoria não pode ser absolutamente confirmada pela experiência, por mais exaustiva que esta seja, pois esta não pode dar conta de todos os casos particulares previstos por aquela, havendo sempre a possibilidade da ocorrência de algum caso particular, ainda não experimentado, que infirme ou limite a proposição teórica. Por isso, as ciências naturais são também probabilísticas, no sentido de que suas predições não são absolutas, mas retificáveis. o Mas, sem dúvida, o grau de probabilidade de que uma predição formulada no âmbito de uma ciência natural venha efetivamente a ocorrer na forma prevista é, via de regra, maior do que a probabilidade de que os fenômenos sociais aconteçam dentro das predições formuladas, porque o mundo social é muito mais dinâmico e complexo que o natural e, por isso mesmo, muito mais sujeito a modificações bruscas. Com isto, não queremos dizer, em absoluto, que as ciências sociais não possam formular princípios gerais, nem fazer predições eficazes. Tal suposição implicaria na negação da possibilidade de estudos sobre o social. O que afirmamos é que as teorias sociais possuem um nível mais baixo de generalização e, por conseqüência, suas predições apresentam menor probabilidade de efetivar-se do que as das ciências naturais. "As mais rigorosas leis científicas assumem, no âmbito da Sociologia, caráter probabilitário, o que torna menos inteligível e, portanto, mas complexo o fenômeno social, que é a resultante de uma entre inúmeras combinações possíveis de seus fatores. Todas as leis científicas são leis probabilitárias. Se diminui o número de fatores a combinar, aumenta a probabilidade de ocorrência de determinado efeito (...)."

b) Outro critério distintivo geralmente apresentado leva em conta a objetividade, que seria maior nas ciências naturais, porque o cientista natural estaria mais descompromissado com ideologias, preconceitos e influências políticas do que o cientista social. Já apontamos detalhadamente o fato de que a neutralidade científica absoluta é um mito (p. 46). Trata-se de um lamentável equívoco considerar que as ciências naturais são isentas de qualquer conteúdo ideológico ou de qualquer influência política, tanto em seus aspectos teóricos quanto práticos. A história das ciências está repleta de exemplos que demonstram a falsidade dessa suposição. Basta lembrarmos as perseguições de que foi vítima GALILEU (1564-1642) e as restrições de caráter ideológico feitas na União Soviética contra certos princípios' da teoria da relatividade, para ilustrarmos o que estamos afirmando. Além do mais, este critério confunde a objetividade da ciência com a objetividade do cientista, transferindo para o plano da intersubjetividade, ou seja, da concordância de opiniões entre vários cientistas, a objetividade científica. O ponto de vista segundo o qual o cientista natural seria mais neutro que o cientista social é magnificamente refutado por POPPER: "É absolutamente errôneo conjeturar que a objetividade da ciência dependa da objetividade do cientista. E é totalmente falso crer que o cientista da natureza seja mais objetivo que o cientista social. O cientista da natureza é tão partidarista quanto o resto dos homens e, em geral, se não pertence ao escasso número daqueles que produzem idéias novas, é extremamente unilateral e partidário no que diz respeito à.s suas próprias idéias. (...) O que pode ser qualificado de objetividade científica baseia-se única e exclusivamente na tradição crítica (...), nessa tradição que permite criticar um dogma dominante. Em outras palavras, a objetividade da ciência não é assunto individual dos diversos cientistas, mas o assunto social de sua crítica recíproca (...), de seu trabalho em equipe e também de seu trabalho por caminhos diferentes, inclusive opostos uns aos outros".

c) Um terceiro critério, relacionado aos dois anteriores, confere à.s ciências naturais o caráter de explicativas e descritivas, enquanto as ciências sociais seriam compreensivas. Este critério se baseia na dificuldade e, muito freqüentemente, na impossibilidade que as ciências sociais encontram para controlar seu próprio objeto e submetê-la a testes experimentais. Ora, em primeiro lugar, a experimentação nem sempre é possível nas próprias ciências naturais, como já observamos (p. 56), o que não impede que as teorias formuladas mesmo sem ela sejam não apenas científicas, como ainda possam retificar outras teorias estabelecidas experimentalmente. Em segundo lugar, o objetivo de toda ciência é fornecer algum tipo de explicação sobre seu objeto. É certo que as ciências naturais conseguem, mais que as sociais, estabelecer relações causais entre fenômenos, isto é, são mais explicativas. Mas isto não significa que as ciências sociais estejam por natureza impossibilitadas de oferecer explicações para os fenômenos que constituem seu objeto, dentro dos limites do instrumental teórico e metodológico utilizado no trabalho de pesquisa.

Os argumentos que terminamos de apresentar parecem-nos suficientes para esclarecer que, de um lado, não há distinção rígida entre as ciências naturais e as ciências sociais, visto que ambas se relacionam e se complementam; e, do outro, que a distinção entre as ciências se faz muito mais com base em suas formulações teóricas e nos problemas que elas se propõem, do que pelos métodos utilizados e, menos ainda, pelos objetos de que elas se ocupam.


Texto complementar



(1) MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do Direito. Conceito, objeto e método. Rio de Janeiro: Forense, 1982. (pp. 79-89)

ESPAÇO, TEMPO E MATÉRIA SOCIAIS

O espaço-tempo na Geometria e na Física

A geometria euclidiana considera o espaço e o tempo como realidades independentes e absolutas. O espaço se caracteriza por ser contínuo, tridimensional, homogêneo e infinito. O tempo se escoa linearmente: é o mesmo em toda a extensão do espaço. Por mais de dois milênios, a geometria de EUCLIDES foi considerada como contendo verdades absolutas e auto-evidentes, constituindo o pressuposto necessário de todo conhecimento e de toda experiência. "As proposições dessa geometria atuavam com necessidade tão premente, que se tinha a sua estrutura como uma obrigatoriedade mental e como o exemplo mais perfeito de uma ciência apodítica e imutável". Apesar de constituir um sistema de pensamento puramente formal (EUCLIDES vê na geometria o estudo da forma e da extensão dos corpos, abstraindo porém os corpos que as contêm), a geometria euclidiana, talvez por sua elevada coerência lógica, atravessou muitos séculos sem ser sequer posta em questão e ainda por cima constituindo a base para diversos estudos de caráter científico e filosófico. NEWTON, por exemplo, construiu sua física apoiando-se nos postulados, então considerados imutáveis, da geometria euclidiana. E foi sobre a infra-estrutura da física newtoniana, que KANT erigiu seu sistema filosófico, notadamente no que se refere às concepções de espaço e tempo. Para KANT, o espaço e o tempo são formas puras da sensibilidade, que não derivam da experiência, mas a pressupõem, constituindo formas a priori do conhecimento.
E assim o idealismo kantiano, mantendo embora a concepção absoluta do espaço e do tempo, transfere-a para o interior da consciência humana, como pressuposto necessário a qualquer tipo de experiência. "(...) a ciência e a filosofia que precedem KANT tinham o espaço e o tempo por algo exterior ao homem, algo preexistente ao homem e no qual estão imersas todas as cousas. KANT inverteu o conceito: o tempo e o espaço não existem fora de nós, mas em nós, são condições a priori do conhecimento humano (...), o espaço e o tempo não são conceitos, mas formas de conceituar. São puras intuições, não correspondem a uma realidaàe objetiva, exterior. Não dependem de qualquer experiência sensível; pelo contrário, esta os pressupõe: não é possível experiência fora do espaço e do tempo".
Foi sobretudo no século passado que alguns matemáticos tomaram consciência da possibilidade de sistemas geométricos logicamente incompatíveis com o euclidiano, mas não menos coerentes, em si mesmos, que o sistema de postulados de EUCLIDES. Foi a partir da tentativa feita por SACCHIERI (1667-1733) para demonstrar o V Postulado de EUCLIDES, que ficou aberto o caminho para a elaboração, já no Séc. XIX, das chamadas geometrias não euclidianas. Toda a geometria de EUCLIDES se baseia na presunção de um espaço plano, isto é, de curvatura igual a zero. Ora, nada autoriza a crença em que um sistema geométrico só possa ser lógico e coerente se tomar por fundamento essa pressuposição. Com efeito, a própria "ambiência fisica em que vivemos nos apresenta duas outras espécies de superfície que fornecem exemplificações concretas dos dois tipos de geometrias não euclidianas que brotam de cada uma das duas maneiras de negar o V Postulado", ou seja, "mais de uma paralela pode ser traçada através de um ponto fora da reta, ou nenhuma paralela pode ser traçada através daquele ponto". No primeiro caso, o espaço geométrico apresentará curvatura negativa, com forma semelhante a uma sela, e ter-se-á a geometria hiperbólica, idealizada por LOBATSCHEWSKY (1793-1856). No segundo, o espaço terá curvatura positiva, assemelhando-se a uma esfera, e teremos a geometria elítica, elaborada por RIEMANN (1826-1866).
Na geometria hiperbólica, diversas paralelas podem ser traçadas de um ponto tomado fora de uma "reta": elas são infinitas, mas não eqüidistantes, pois tendem a aproximar-se à medida que avançam, porém não chegam propriamente a tocar-se. Já na geometria elítica, nenhuma paralela pode ser traçada, porque, sendo finito o espaço nesta geometria, as linhas necessariamente se encontrarão, como acontece, por exemplo, quando traçamos círculos sobre a superfície de uma esfera. As geometrias não euclidianas não contestam a validade da euclidiana: apenas a limitam, restringindo sua eficácia somente às superfícies planas, e negando-lhe o valor universal que antes se lhe atribuía. "O espaço euclidiano passou a ser um caso limite, para quando certas propriedades físico-espaciais tendem a se anular, diminuindo sua curvatura (...)". Os fundamentos matemáticos de cada uma dessas três geometrias são tão precisos quanto os da demais, dentro das características dos diversos tipos de espaço em que foram concebidas.
As geometrias não enclidianas abriram uma importantíssima questão para a Física: Qual a forma real do espaço em que vivemos? Como se processam, no espaço físico, as trajetórias das chamadas "linhas retas", representadas, por exemplo, pelos raios luminosos? Foi dentro deste contexto que EINSTEIN formulou suas teorias da relatividade. Ao contrário do que supõem a geometria euclidiana e a física newtoniana, o espaço, para EINSTEIN, não constitui aquela moldura estática e homogênea, preexistente e continente de toda matéria, dentro da qual ocorreriam os fenômenos. Pelo contrário: ele é essencialmente variável em função das características da matéria. Os corpos geram, ao seu redor, um campo de forças, de natureza eminentemente eletromagnética, que EINSTEIN chamou de temor material. Nas proximidades dos corpos celestes, esse tensor encurva o espaço, e o encurva positivamente, dando-lhe características análogas às formuladas pela geometria elítica.
Por outro lado, só há espaço físico onde houver matéria ou energia, o que significa, em primeiro lugar, que em toda parte o espaço está sujeito à influência de diferentes sistemas de tensores materiais, que o encurvam de modos diferentes (daí a sua natureza essencialmente variável); e, em segundo lugar, que, sendo curvo e existindo em função da matéria ou energia, o espaço físico há de ser necessariamente finito, embora ilimitado. Observações astronômicas repetidamente feitas a partir da segunda década deste século têm demonstrado a curvatura do espaço, não estando, todavia, determinado com precisão se ela é sempre positiva, ou se pode apresentar-se negativamente, dentro do modelo da geometria hiperbólica. No que concerne ao tempo, a teoria da relatividade lhe nega o caráter absoluto e linear que lhe era atribuído. A natureza do tempo só pode ser compreendida dentro das particulares espécies de processos que se manifestam no Universo, ou seja, qualquer relação temporal entre acontecimentos não coincidentes deriva de alguma relação física existente entre esses acontecimentos. O conceito de simultaneidade, por exemplo, não é absoluto como o supõe NEWTON, mas relativo aos diversos sistemas de observação, sobretudo quando estes se movem uns em relação aos outros. A física einsteiniana veio, portanto, desmistificar o caráter absoluto que era atribuído ao espaço e ao tempo. "Não há espaço, nem tempo, nem movimento absolutos, como na velha física newtoniana; pelo contrário, tudo é relativo, em face da impossibilidade' de padrões absolutos de referência. Nem podemos tampouco cindir o espaço-tempo, desligando-o da matéria. O espaço é um continuum quadridimensional, em que o tempo representa a quarta dimensão de MINKOWSKI; o Universo, o complexo espaço-tempo-matéria".

O espaço-tempo social

Os comentários que acabamos de fazer, embora muito resumidos, fornecem uma idéia aproximada acerca das novas concepções do espaço-tempo nos campos da geometria e da física modernas. Pode parecer estranho que, num trabalho que pretende abordar os aspectos científicos do Direito, recorramos a tais noções. Não obstante, elas são da maior importância para a compreensão deste trabalho. Em primeiro lugar, as noções de espaço e tempo estão, implícita ou explicitamente, no fundo de toda teoria científica ou filosófica; em segundo lugar, o espaço-tempo social apresenta características extraordinariamente análogas w; do espaço-tempo físico, como logo a seguir demonstraremos; e, em terceiro lugar, o fenômeno jurídico é necessariamente interior ao espaço social, não podendo, portanto, ser eficazmente estudado com abstração das condições espaço-temporais em que se gera e se modifica.

O espaço social, como acima frisamos, apresenta características muito semelhantes àquelas que a i,eoria da relatividade atribui ao espaço físico. Podemos ficar em dúvida quanto ao caráter não absoluto do espaço-tempo físico, pois afinal essa noção contraria profundamente as evidências do senso comum, que rege a grande maioria de nossas ações diárias. Quando se trata, porém, do espaço social, a compreensão de seu caráter não absoluto se torna bem mais fácil. Suponhamos, por exemplo, o nosso planeta antes do surgimento dos primeiros agrupamentos humanos. É claro que ali não havia qualquer tipo de sociedade, por isso que não existiam homens que se associassem. E é claro, também, que não existia o próprio espaço social, visto que não havia matéria social (relações sociais) que o constituísse e preenchesse. O espaço social, por conseguinte, só existe em função da matéria social que o gera.
Ele somente surge com a matéria social. É praticamente inconcebível a existência de um espaço social vazio, mas autônomo e absoluto, que ficasse simplesmente à espera de ser preenchido por futuras relações sociais. 29 Cada espécie de relação social cria e desenvolve o espaço que lhe é próprio. O sistema de crédito bancário, por exemplo, com todas as relações sociais que lhe são conseqüentes, só surgiu a partir do momento em que o de~envolvimento das relações econômicas tornou possível sua existência. E só a partir daí é que se pode falar nesse tipo específico de espaço sócio-econômico, dinâmico e modificável como as próprias relações que o constituem.
Antes, não havia sequer esse tipo de espaço, visto que as relações sócio-econômicas não tinham atingido suficiente grau de diversificação e complexidade para constituí-Io.

Assim, o espaço social de modo algum é absoluto, mas relativo à natureza da matéria que o gera e o transforma, bem como aos diversos estágios do tempo social, que correspondem aos vários momentos histórico-culturais de cada sociedade concreta. Por isso mesmo, tanto quanto o espaço físico, é o espaço social essencialmente variável, em virtude do caráter eminen.
temente dinâmico da matéria social. Isto significa que ele não é homogêneo, pois apresenta diferentes características, não s6 em cada uma das diversas sociedades humanas quando com.
paradas umas com as outras, como também dentro de uma mesma sociedade, cujos inúmeros tipos específicos de relações não se desenvolvem uniformemente. Sendo heterogêneo, ele é também descontínuo, apresentando autênticas "rachaduras" entre grupos de relações altamente complexas e diferenciadas, que conferem maior densidade ao espaço social, e outros grupos de relações mais simples e uniformes, de densidade mais baixa, que com os primeiros coexistem e muitas vezes a eles se opõem.
Por outro lado, o espaço social, constituído como é por relações heterogêneas e descontinuas, é n-dimensional, no sentido de que comporta relações das mais diferentes naturezas, que constituem as, dimensões sob as quais podem ser analisados os fatos sociais: dimensões de caráter econômico, jurídico, político, moral, religioso, científico, filosófico, artístico etc. Além disso, o espaço social se encontra, tanto quanto o espaço físico, em permanente expansão, visto que a dinâmica social não só diversifica continuamente as relações já existentes, como também gera a todo instante novos tipos de relações, aos quais correspondem espaços sociais especificos. Daí o seu caráter igualmente finito, embora ilimitado, e, por conseguinte, não euclidiano.
Foi considerando essas características do espaço social, sobretudo a heterogeneidade, a descontinuidade e a n-dimensionalidade, que PONTES DE MIRANDA estabeleceu a teoria dos campos de soc:alificação, constituídos por grupos de relações sociais bastante complexas e diversificadas, com elevado grau de densidade, atribuindo-lhes a função de formarem autênticos campos de força que se traduzem na existência de um tensor soc:al, análogo ao tensor material do mundo físico, em torno do qual se encurvaria o espaço social. 30 Convém usar de cautela diante de semelhante proposição, sobretudo se ela traduz a tendência da jisicalização da Sociologia, peculiar a diversas correntes empiristas, que afirmam a possibilidade de uma unificação da ciência a partir do emprego de uma metodologia comum. outro, aliás, não parece ser o entendimento de PONTES DE MlRANDA, quando, em sua Introdução à Sociologia Geral, propõe: "As leis físicas são inteiramente aplicáveis" (às relações físico-sociais), "porque admitir o contrário seria destruir os princípios e leis universais, pois importaria aceitar a possibilidade de não serem válidos em algum domínio dos fenômenos do Univerm." 31 Ora, não é só porque as características do espaço-tempo social correspondem, de um modo geral, às determinadas pela teoria da relatividade, que devamos simplesmente fazer uma transposição destas para aquelas, abstraindo suas especificidades. Como sustentamos no item 1 deste capítulo, não só os fenômenos sociais são qualitativamente diferentes dos naturais, como a distinção entre as ciências se faz considerando sobretudo os seus particulares enfoques teóricos e os problemas que elas se propõem. Ainda que o espaço social possua, como efetivamente possui, diversos pontos em comum com o espaço físico, há características específicas que os distinguem, a partir mesmo da própria natureza das matérias que os constituem. E, mesmo que não houvesse diferenças qualitativas entre essas matérias, os enfoques teóricos e metodológicos das ciências sociais haveriam de ser diversos dos das ciências naturais, pois diversos são os pontos de vista sob os qua:s cada ciência estuda a realidade, e diversos são os problemas que e!as formulam e buscam resolver. Daí a autonomia de cada disciplina científica, que se traduz não numa separação absoluta entre elas, mas nas diferentes modalidades de enfocar teoricamente seus respectivos objetos de conhecimento.
No que concerne ao tempo social, sua existência não é absoluta, mas relativa às características da matéria e do espaço. Por outro lado, o tempo social difere qualitativamente do tempo físico, pois só existe em função dos diversos estágios histórico-culturais interiores às sociedades. O mundo contemporâneo, por exemplo, assiste, dentro de um mesmo momento cronológico, à coexistência de inúmeros tempos sociais diferentes, tal a diversidade de estágios histórico-culturais que as sociedades, ou mesmo determinados segmentos de uma única sociedade, atravessam. 82 Igualmente ao que ocorre no mundo físico, o tempo social não é, de modo algum linear, no sentido de fluir contínua e homogeneamente em toda a extensão do espaço. A simples coexistência de diversos tempos sociais dentro de um mesmo tempo físico já fornece um excelente exemplo de seu caráter descontínuo e heterogêneo. Além disso, o tempo social também não é linear no sentido de que cada uma de suas etapas constitua passagem obrigatória a todas as sociedades em seus respectivos processos de "desenvolvimento". Com efeito, nada nos autoriza a supor, por exemplo, que uma determinada sociedade dita "primitiva" venha a percorrer, em seu processo de "desenvolvimento", as mesmas etapas vencidas pelas sociedades industriais contemporâneas, até alcançar o estágio de "civilização" em que estas atualmente se encontram. Pelo contrário: entre esses tipos de sociedade há diferenças tão substanciais em todas as dimensões do espaço-tempo cultural, que o mais provável é que elas não sigam essas etapas de desenvolvimento, e nem sequer se proponham atingir um estágio de desenvolvimento análogo ao das sociedades industrializadas. Os diversos tipos de organização social são, portanto, apenas diferentes, com visões de mundo e juízos de valor próprios, variáveis em função das condições concretas de existência social e das características do espaço-tempo social localizado. Por isso, as distâncias temporais entre as diversas sociedades não podem ser medidas cronologicamente, do mesmo modo que as distâncias espaciais dentro, por exemplo, da pirâmide social numa sociedade de classes não podem ser mensuradas metricamente.

A matéria social: considerações epistemológicas

Após essas breves considerações sobre o espaço e o tempo sociais, abordemos agora a matéria social, isto é, as relações ou fenômenos sociais, focalizando-a apenas em seus aspectos mais significativos. O primeiro aspecto a destacar é a existência objetiva dos fenômenos sociais. Sem dúvida, a sociedade existe objetivamente e possui realidade e características próprias, que vão muito além de um simples somatório das características dos indivíduos que a compõem. "O social transcende o individual, embora o suponha". Possuindo realidade autônoma, a sociedade não pode ser reduzida apenas a um complexo de relações psíquicas inter-individuais, como queria TARDE. 34 Há algo nela que a caracteriza como muito mais do que uma mera síntese dos indivíduos, 35 assim como a água possui propriedades que não se encontram isoladamente nem no oxigênio, nem no hidrogênio. O fato de a sociedade possuir realidade objetiva é aceito por praticamente todas as correntes de pensamento, quer empiristas, quer racionalistas, talvez com a única exceção do idealismo extremado. Por isso, a existêncIa objetiva da sociedade, ou, melhor dizendo, das sociedades concretas, não apresenta maiores problemas.
O problema surge - e eis o segundo aspecto da questão - no momento em que nos indagamos se é possível conhecer cientificamente as características dessas sociedades, formular leis e teorias explicativas sobre os fenômenos que ali se processsam e, sobretudo, como proceder para elaborar teorias científicas sobre o social. O empirista provavelmente dará respostas simples a questões tão complexas. Ele dirá, por exemplo, que, possuindo os fatos sociais realidade própria - existindo como coisas, no dizer de DURKHEIM -, basta que o pesquisador esteja convenientemente preparado para captá-los e descrevê-Ios como eles efetivamente são, após o que não haverá maiores dificuldades em identificar as leis que os regem e que seriam, por assim dizer, extraídas dos próprios fenômenos. E, se lhe perguntarmos como saber se o pesquisador está convenientemente preparado para captar e descrever os fatos sociais, o empirista responderá que isto depende da adequação do método que ele utilize, ou - para traduzirmos mais fielmente a concepção empirista - dirá que isto depende da utilização do método rigorosamente científico, que é o método indutivo, comum a .todas as ciências e modificável apenas em pequenos aspectos, para atender à natureza do objeto estudado e, assim, melhor poder captá-lo, fazendo inclusive aquelas "descobertas que hão de surpreendê-lo e desconcertá-lo", a que se refere DURKHEIM (V. nota 2, p. 90). De qualquer forma, o conhecimento fluirá do objeto, ou seja, o vetor epistemológico irá do real ao racional, bem dentro dos cânones estabelecidos pelo empirismo.
Esta aparente simplicidade se complica quando submetida à crítica dialética. Porque a elaboração científica não é um processo tão simples assim de extrair dos próprios fatos as leis que os regem. 36 Ela é necessariamente um trabalho de construção, como temos insistido repetidamente, e construção de todas as etapas da pesquisa: da teoria, do problema, das hipóteses, do método, das técnicas de observação e experimentação e também do próprio objeto. É com o objeto de conhecimento, teoricamente construído ou reconstruído, e não diretamente com o objeto real, que trabalham todas as ciências, naturais ou sociais. A eficácia de qualquer proposição sociológica se mede, por conseguinte, pelas contribuições teóricas que ela apresenta ao conhecimento, isto é, por sua adequação ao objeto ,de conhecimento, sobretudo quando ela o reconstrói, rompendo com o sistema anterior de explicações, ou limitando-o. Este é o critério por excelência da validade de uma teoria científica, muito mais do que sua adequação ao objeto real - pois este, afinal, só é acessível dentro de determinado referencial teórico - e do que qualquer rigor metodológico estabelecido a priori - porque o método só faz sentido em função do sistema teórico em que se insere. 37 Outra coisa não fizeram as geometrias não euclidianas, cujos princípios gerais há pouco sintetizamos.
Elas não contêm somente uma explicação diferente para aspectos da mesma realidade, nem tampouco são baseadas nos fatos ou em qualquer tipo de evidência. Na verdade, elas constituem sistemas de explicação teórica inteiramente novos em relação à geometria euclidiana, com a qual romperam, limitando-a. ,E essa autêntica ruptura na Geometria implicou em toda uma reformulação da própria disciplina, atingindo suas proposições teóricas, seus métodos e o seu objeto mesmo, porque o objeto de que se ocupam as geometrias não euclidianas nada tem em comum com o da geometria euclidiana, concebido dentro de uma estrutura espacial que lhe é própria.
Trata-se de um objeto completamente novo, construído em função de todo um redimensionamento teórico da Geometria. Todas estas considerações não significam que estejamos negando objetividade aos fenômenos sociais, e muito menos a possibilidade de eles serem passíveis de investigação científica.
Pelo contrário: estamos precisamente afirmando essa objetividade e essa possibilidade, ou dizendo melhor, essa realidade científica. Mas o fazemos dentro das condições concretas em que se produzem os conhecimentos científicos como construções teóricas voltadas para a realidade, e não oriundas dela.
Em outras palavras, entendemos que as ciências sociais constituem, como quaisquer outras, sistemas teóricos aproximados e retificáveis, resultantes de um processo de construção não só da teoria, mas também do método e do objeto. E essa construção se dá em condições localizadas, dentro do complexo incindível espaço-tempo-matéria, que constitui o universo social. Para reafirmarmos a posição dialética que assumimos no Capítulo I (p. 10), lembramos que o conhecimento científico social decorre da relação sujeito-objeto, em que o primeiro é que toma a iniciativa, ao invés de assumir o papel passivo de simplesmente captar e descrever fatos.


Exercícios

1) Diferencie Ciências Naturais de Ciências Humanas (Sociais)

2) O que é objetividade? Explique.

3) Existe objetividade no conhecimento relacionado a tempo e espaço na física? E nas ciências humanas?

4) Sobre a ciência marque as alternativas corretas:
01) O sol gira em torno da terra: é um saber intuitivo.
02) A toda ação há uma reação igual e em sentido contrário: é um saber intuitivo.
04) Empírico é o saber baseado na experiência.
08) Especulação é saber baseado na experiência.
16) O pensamento indutivo parte do geral para o particular.
32) O pensamento dedutivo parte do geral para o particular.