domingo, 12 de agosto de 2012

Marx era um historiador?


Marx era um historiador? 




Marx era um "historiador" profissional? 
Não podemos afirmar isso! 

Apesar de suas obras histórias (18 Brumário, etc.) 


Mas suas teorias servem de referência para o desenvolvimento de novas teorias historiográficas: 

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica.” 18 Brumário de Louis Bonaparte 


Materialismo histórico – Modo de produção – Ideologia. 

As noções básicas do marxismo: modo de produção - luta de classes - caráter determinante da economia em última instância - caráter universal das contradições 


A teoria marxista está fundamentada na história à mas não é uma "teoria da história" 

Sua principal função não é nem jamais foi apresentar uma explicação geral, mecânica e com caráter de panacéia do desenvolvimento histórico das sociedades humanas em sua cronologia concreta. à Modos de produção e sua sucessão – não são verdades absolutas. 



Como redator da Gazeta Renana ele se indigna com o “furto de lenha” punido como delito em nome da propriedade, o jovem Marx intui, segundo Pierre Villar, os primeiros princípios de sua teoria da história: 

Historiador Piere Villar
a) O direito hierarquiza e define os desvios entre a ação do indivíduo e a sociedade, mas estes não são eternos e o legislador não legisla em abstrato. 

b) A definição jurídica da propriedade é feita pelos proprietários. Neste caso, coloca-se uma questão: não será a sociedade civil que faz o Estado ao invés de ser o Estado que faz a sociedade civil? Da resposta a esta questão, segundo Villar, irá derivar toda uma concepção de história. 

c) Marx reflete a sociedade feudal anterior à Revolução Francesa, já denominada feudal e percebe que ela tem sua própria racionalidade com relação ao direito. 

d) Ao aprofundar seu exame das relações sociedade/Estado, observa que não só uma classe – e não um Estado abstrato – que decreta e legisla, como a classe que chega ao poder se apodera dos instrumentos do Estado, excluindo de sua organização as classes subalternas. 

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A questão judaica (1944) à anterioridade da sociedade civil com relação ao Estado. 

É com a Ideologia Alemã (1845) que o problema da História como ciência é verdadeiramente enfrentado. O contato com obras de historiadores e com fontes históricas contribuem para esse enfrentamento. Ao invés de se dedicarem ao estudo de fatos particulares, Marx e Engels iniciam a sistematização dos princípios científicos da matéria História. As questões fundamentais para o materialismo histórico, contidas na Ideologia Alemã, são, entre outras: 

a) o primado da produção 

b) As relações entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. 

c) a relação entre estas realidades e as representações que delas fazem os homens; 

d) a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas e suas conseqüências revolucionárias; 

e) a critica à História tradicional (século XIX) quando, ideologicamente, ela justifica a conquista e colonização pela superioridade material e intelectual dos grupos e nações; 

f) substitui a clássica oposição entre interesse individual e coletivo pela oposição entre interesses de classe no poder e de classes subordinadas. 

g) “as idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes” 



Deve o historiador pensar uma sociedade de outra época segundo critérios atuais? 

a) um anti-historicismo e o primado do raciocínio do tipo estrutural. Ser anti-historicista não significa ser anti-histórico. É uma posição contra a história empiricista, mera sucessão linear de acontecimentos, separada da teoria. 

b) a condenação a qualquer filosofia e em especial a filosofia da história. Isto significa que, ao criticar o idealismo, Marx e Engels pensaram a superação progressiva da filosofia e ciência – o materialismo histórico. 

c) um método que emprega a abstração como restremecido científico, mediante a elaboração de “abstratos reais”, constantemente submetidos à prova de fatos concretos. 



Os conceitos que permanecem: 

a) classes sociais 

b) Ideologia 



Segundo a prof. Marilena Chauí, o historiador deve recuperar o instrumental marxista retendo, principalmente, três questões fundamentais do pensamento de Marx: 

- a noção de luta de classes; 

- o projeto de emancipação global da sociedade; 

- a idéia de que o capitalismo não é fundamental, mas um sistema que impede a civilização de um verdadeiro humanismo. 




O Marxismo Ocidental – 4 Correntes 

1) Marxismo neo-revolucionário – Pensadores ligados a prática política – Luxemburgo, Lênin, Gramsci, Lukács (...) 

2) Escola de Frankfurt – Pensadores que correlacionam Marx e Freud – Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, (1ª fase de Habermas) 

3) Marxismo acadêmico – Pensadores que correlacionam Marx a teorias acadêmicas diversas – Althusser, Perry Anderson, Sartre, etc. 

4) New Left – Pensadores que ligam Marx a visões de estudos culturais – R. Williams, S. Hall, E. P. Thompson, etc. 



THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Volume I) (Prefácio) 

Edward Palmer Thompson - (3 de fevereiro de 1924, Oxford - 28 de agosto de 1993, Worcester) 
# A Formação da Classe Operária Inglesa (3 volumes); 
# Senhores e Caçadores; 
# A Miséria da Teoria; 
# Costume em Comum 

A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se. Classe, e não classes, por razões cujo exame constitui um dos objetivos deste livro. Evidentemente, há uma diferença. "Classes trabalhadoras" é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e juntos constituem as classes trabalhadoras. 

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma "estrutura", nem mesmo como uma "categoria", mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. 

Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco uni do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas. cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram — ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. 

Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. Não era esse o significado em Marx, em seus escritos históricos, mas o erro deturpa muitos textos "marxistas" contemporâneos. "Ela", a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente — uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que "ela" deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas "defasagens" e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas como deveria ser. 

Mas um erro semelhante é diariamente cometido do outro lado da divisória ideológica. Sob uma Forma, é uma negação pura e simples. Como a tosca noção de classe atribuída a Marx pode ser criticada sem dificuldades, assume-se que qualquer noção de classe é uma construção teórica pejorativa, imposta às evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe. Sob outra forma, e por uma inversão curiosa, é possível passar de uma visão dinâmica para uma visão estática de classe. "Ela" — a classe operária — existe, e pode ser definida com alguma precisão como componente da estrutura social. A consciência de classe, porém, é algo daninho, inventado por intelectuais deslocados, visto que tudo o que perturba a coexistência harmoniosa de grupos que desempenham diferentes "papéis sociais" (assim retardando o crescimento econômico) deve ser lamentado como um "sintoma de distúrbio injustificado". O problema consiste em determinar a melhor forma de condicioná-"la", para que aceite seu papel social, e de melhor "tratar e canalizar" suas queixas. 

Se lembramos que a classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. "Ela" não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões, tal como fez uma autoridade no assunto que (num estudo de classe obsessivamente preocupado com questões metodológicas, excluindo o exame de qualquer situação real de classe num contexto histórico real) nos informou: 

As classes se baseiam nas diferenças de poder legítimo associado a certas posições, i.é, na estrutura de papéis sociais em relação a suas expectativas de autoridade. . . . Um indivíduo torna-se membro de uma classe ao desempenhar um papel social relevante do ponto de vista da autoridade. ... Ele pertence a uma classe porque ocupa uma posição numa organização social; i.é, o pertencimento a uma classe é derivado da incumbência de um papel social. (R. Dahrendorf, Class and Class Cnnflict in Industrial Society, 1959, p. 148-9). 



a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse "papel social" e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de autoridade) aí chegou. Estas são questões históricas. Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas idéias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição. 

Se mostrei um entendimento insuficiente das preocupações metodológicas de certos sociólogos, espero, no entanto, que este livro seja tomado como uma contribuição para a compreensão da classe. Pois estou convencido de que não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico. Nos anos entre 1780 e 1832 os trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores. Essa classe dirigente estava, ela própria, muito dividida, e de fato só conseguiu maior coesão nesses mesmos anos porque certos antagonismos se dissolveram (ou se tornaram relativamente insignificantes) frente a uma classe operária insurgente. Portanto, a presença operária foi, em 1832, o fator mais significativo da vida política britânica. 

Assim está escrito o livro. Na Parte I, trato das tradições populares vigentes no século 18 que influenciaram a fundamental agitação jacobina dos anos 1790. Na Parte II, passo das influências subjetivas para as objetivas — as experiências de grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que me parecem de especial relevância. Tento também avaliar o caráter da nova disciplina industrial do trabalho e da posição, a esse respeito, da Igreja Metodista. Na Parte III, recolho a história do radicalismo plebeu, levando-a, através do luddismo, até a época heróica no final das Guerras Napoleônicas. Finalmente, discuto alguns aspectos da teoria política e da consciência de classe nos anos 1820 e 1830. 

Este é antes um conjunto de estudos sobre temas correlatos do que uma narrativa seqüenciada. Ao selecionar os temas, estava ciente de, por vezes, escrever contra o peso de ortodoxias predominantes. Há a ortodoxia fabiana, onde os trabalhadores em sua grande maioria são vistos como vítimas passivas do laissez-faire, com a exceção de alguns organizadores com uma visão de longo alcance (especialmente Francis Place). Há a ortodoxia dos historiadores econômicos empíricos, onde os trabalhadores são vistos como força de trabalho, migrantes ou dados de séries estatísticas. 

Há a ortodoxia do "Progresso do Peregrino", onde aquele período é esquadrinhado em busca de pioneiros precursores do Estado do Bem-Estar Social, progenitores de uma Comunidade Socialista ou (mais recentemente) precoces exemplares de relações industriais racionais. Cada uma dessas ortodoxias tem uma certa validade. Todas contribuíram para nosso conhecimento. Discordo das duas primeiras porque tendem a obscurecer a atuação dos trabalhadores, e o grau com que contribuíram com esforços conscientes, no fazer-se da história. Discordo da terceira porque lê a história à luz de preocupações posteriores, e não como de fato ocorreu. Apenas os vitoriosos (no sentido daqueles cujas aspirações anteciparam a evolução posterior) são lembrados. Os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores são esquecidos. 

Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do "obsoleto" tear manual, o artesão "utópico" e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser. condenados em vida, vítimas acidentais. 

Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior. Afinal de contas, nós mesmos não estamos no final da evolução social. Podemos descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior parte do mundo ainda hoje passa por problemas de industrialização e de formação de instituições democráticas, sob muitos aspectos semelhantes à nossa própria experiência durante a Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou na África. 

(...) 

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Idéia sobre uso de materiais legais em História “Para esses autores, o direito seria algo como um sistema vivenciado de significados, valores e práticas. A lei, ou melhor dizendo, o direito enquanto ideologia, procura circunscrever um limite para a interação de personagens sociais: o estado de direito. Uma das condições para que esse papel possa ser cumprido, é a de que a grande maioria dos indivíduos ou grupos a ela recorram. Nesse sentido, a lei não pode ser patentemente facciosa. Tal necessidade teria levado a que os propósitos de diversos grupos, mesmo os daqueles econômica e politicamente não-dominantes, deixassem as suas marcas, mais ou menos visíveis, na legislação. Desta forma, para que possamos abordar a lei, devemos dar-lhe um crédito inicial. Acreditar nos enunciados que ela profere sobre sua própria natureza: um espaço, ainda que não de todo imparcial, de mediação entre indivíduos ou grupos sociais. A lei simultaneamente institui um espaço para relações legitimando-as, e é mantida na medida em que a ela recorrem para o exercício concreto da mediação”. PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR, 1996, p. 14-5. 


Opinião: Cuidado com a visão apontada pelo prof. Magnus, em se tratando de uma colônia escravista não é possível falar na necessidade de politicamente existirem marcas de certas camadas das populações. A realidade sócio-cultural brasileira era diferente da realidade sócio-cultural da Inglaterra e não é possível seguir o modelo do prof. Thompson sem críticas. 





Hobsbawn - Eric John Earnest Hobsbawm (Alexandria, 9 de Junho de 1917) é um historiador marxista reconhecido internacionalmente. 

Principais obras: 
# A Era das Revoluções 
# Era do Capital 
# A Era dos Impérios 
# Era dos Extremos 

Eric Hobsbawm & Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Págs. 9-23. 
1. Introdução: A Invenção das Tradições 

Nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que ela participe. Todavia, segundo um dos capítulos deste livro, este aparato, em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX. Muitas vezes, “tradições” que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas. Quem conhece os “colleges” das velhas universidades britânicas poderá ter uma idéia da instituição destas “tradições” (a nível local, embora algumas delas - como o Festival of Nine Lessons and Carols (Festa das Nove Leituras e Cânticos), realizada anualmente, na capela do King’s College em Cambridge, na véspera de Natal - possam tornar-se conhecidas do grande público através de um meio moderno de comunicação de massa, o rádio. Partindo desta constatação, o periódico Past & Present, especializado em assuntos históricos, organizou uma conferência em que se baseou, por sua vez a presente obra. 

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez. A transmissão radiofônica real realizada no Natal na Grã-Bretanha (instituída em 1932) é um exemplo do primeiro caso; como exemplo do segundo, podemos citar o aparecimento e evolução das práticas associadas à final do campeonato britânico de futebol. É óbvio que nem todas essas tradições perduram; nosso objetivo primordial, porém, não é estudar suas chances de sobrevivência, mas sim o modo como elas surgiram e se estabeleceram. 

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. Exemplo notável é a escolha deliberada de um estilo gótico quando da reconstrução da sede do Parlamento britânico no século XIX, assim como a decisão igualmente deliberada, após a II Guerra, de reconstruir o prédio da Câmara partindo exatamente do mesmo plano básico anterior. O passado histórico no qual a nova tradição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. Até as revoluções e os “movimentos progressistas”, que por definição rompem com o passado, têm seu passado relevante, embora eles terminem abruptamente em uma data determinada, tal como 1789. Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea. 

A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que quando numa aldeia se reivindicam terras ou direitos comuns “com base em costumes de tempos imemoriais” o que expressa não é um fato histórico, mas o equilíbrio de forças na luta constante da aldeia contra os senhores de terra ou contra outras aldeias. Os estudiosos do movimento operário inglês sabem que o “costume da classe” ou da profissão pode representar não uma tradição antiga, mas qualquer direito, mesmo recente, adquirido pelos operários na prática, que eles agora procuram ampliar ou defender através da sanção da perenidade. O “costume” não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. O direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de flexibilidade implícita e comprometimento formal com o passado. Nesse aspecto, aliás, a diferença entre “tradição” e “costume” fica bem clara. “Costume” é o que fazem os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que. é a ação do magistrado. A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição” à qual ele geralmente está associado. 

É necessário estabelecer uma segunda diferença, menos importante, entre a “tradição” no sentido a que nos referimos e a convenção ou rotina, que não possui nenhuma função simbólica nem ritual importante, embora possa adquiri-Ias eventualmente. É natural que qualquer prática social que tenha de ser muito repetida tenda, por conveniência e para maior eficiência, a gerar um certo número de convenções e rotinas, formalizadas de direito ou de fato, com o fim de facilitar a transmissão do costume. Isto é válido tanto para práticas sem, precedente (como o trabalho de um piloto de avião) como para as práticas já bastante conhecidas. As sociedades que se desenvolveram a partir da Revolução Industrial foram naturalmente obrigadas a inventar, instituir ou desenvolver novas redes de convenções e rotinas com uma freqüência maior do que antes. Na medida em que essas rotinas funcionam melhor quando transformadas em hábito, em procedimentos automáticos ou até mesmo em reflexos, elas necessitam ser imutáveis, o que pode afetar a outra exigência necessária da prática, a capacidade de lidar com situações imprevistas ou originais. Esta é uma falha bastante conhecida da automatização ou da burocratização, especialmente a níveis subalternos, onde o procedimento fixo geralmente é considerado como o mais eficiente. 

Tais redes de convenção e rotina não são “tradições inventadas”, pois suas funções e, portanto, suas justificativas são técnicas, não ideológicas (em termos marxistas, dizem respeito à infra-estrutura, não à superestrutura). As redes são criadas para facilitar operações práticas imediatamente definíveis e podem ser prontamente modificadas ou abandonadas de acordo com as transformações das necessidades práticas, permitindo sempre que existam a inércia, que qualquer costume adquire com o tempo, e a resistência às inovações por parte das pessoas que adotaram esse costume. O mesmo acontece com as “regras” reconhecidas dos jogos ou de outros padrões de interação social, ou com qualquer outra norma de origem pragmática. Pode-se perceber de imediato a diferença entre elas e a “tradição”. O uso de bonés protetores quando se monta a cavalo tem um sentido prático, assim como o uso de capacetes protetores quando se anda de moto ou de capacetes de aço quando se é um soldado. Mas o uso de um certo tipo de boné em conjunto com um casaco vermelho de caça tem um sentido completamente diferente. Senão, seria tão fácil modificar o costume “tradicional” dos caçadores de raposa como mudar o formato dos capacetes do Exército - instituição relativamente conservadora - caso o novo formato garantisse maior proteção. Aliás, as “tradições” ocupam um lugar diametralmente oposto às convenções ou rotinas pragmáticas. A “tradição” mostra sua fraqueza quando, como no caso dos judeus liberais, as restrições na dieta são justificadas de um ponto de vista pragmático, por exemplo, alegando-se que os antigos hebreus não comiam carne de porco por motivos de higiene. Do mesmo modo, os objetos e práticas só são liberados para uma plena utilização simbólica e ritual quando se libertam do uso prático. As esporas que fazem parte do uniforme de gala dos oficiais de cavalaria são mais importantes para a “tradição” quando os cavalos não estão presentes; os guarda-chuvas dos oficiais da Guarda Real, quando eles estão à paisana, perdem a importância se não forem trazidos bem enrolados (isto é, inúteis); as perucas brancas dos advogados dificilmente poderiam ter adquirido sua importância atual antes que as outras pessoas deixassem de usar perucas. 

Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição. Os historiadores ainda não estudaram adequadamente o processo exato pelo qual tais complexos simbólicos e rituais são criados. Ele é ainda em grande parte relativamente desconhecido. Presume-se que se manifeste de maneira mais nítida quando uma “tradição” é deliberadamente inventada e estruturada por um único iniciador, como é o caso do escotismo, criado por Baden Powell. Talvez seja mais fácil determinar a origem do processo no caso de cerimoniais oficialmente instituídos e planejados, uma vez que provavelmente eles estarão bem documentados, como, por exemplo, a construção do simbolismo nazista e os comícios do partido em Nuremberg. É mais difícil descobrir essa origem quando as tradições tenham sido em parte inventadas, em parte desenvolvidas em grupos fechados (onde é menos provável que o processo tenha sido registrado em documentos) ou de maneira informal durante um certo período, como acontece com as tradições parlamentares e jurídicas. A dificuldade encontra-se não só nas fontes, como também nas técnicas, embora estejam à disposição dos estudiosos tanto disciplinas esotéricas especializadas em rituais e simbolismos, tais como a heráldica e o estudo das liturgias, quanto disciplinas históricas warburguianas para o estudo das disciplinas citadas acima. Infelizmente, nenhuma dessas técnicas é comumente conhecida dos historiadores da era industrial. 

Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos historiadores onde não haja ocorrido a “invenção” de tradições neste sentido. Contudo, espera-se que ela ocorra com mais freqüência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as “velhas” tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. Durante os últimos 200 anos, tem havido transformações especialmente importantes, sendo razoável esperar que estas formalizações imediatas de novas tradições se agrupem neste período. A propósito, isto implica, ao contrário da concepção veiculada pelo liberalismo do século XIX e a teoria da “modernização”, que é mais recente, a idéia de que tais formalizações não se cingem às chamadas sociedades “tradicionais”, mas que também ocorrem, sob as mais diversas formas, nas sociedades “modernas”. De maneira geral, é isso que acontece, mas é preciso que se evite pensar que formas mais antigas de estrutura de comunidade e autoridade e, conseqüentemente, as tradições a elas associadas, eram rígidas e se tornaram rapidamente obsoletas; e também que as “novas” tradições surgiram simplesmente, por causa da incapacidade de utilizar ou adaptar as tradições velhas. 

Houve adaptação quando foi necessário conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos fins. Instituições antigas, com funções estabelecidas, referências ao passado e linguagens e práticas rituais podem sentir necessidade de fazer tal adaptação: a Igreja Católica, frente aos novos desafios políticos e ideológicos e às mudanças substanciais na composição do corpo de fiéis (tais como o aumento considerável do número de mulheres tanto entre os devotos leigos quanto nas ordens religiosas); os exércitos mercenários frente ao alistamento compulsório; as instituições antigas, como os tribunais, que funcionam agora num outro contexto e às vezes com funções modificadas em novos contextos. Também foi o caso das instituições que gozavam de uma continuidade nominal, mas que no fundo estavam sofrendo profundas transformações, como as universidades. Assim, segundo Bahnson, a tradicional evasão estudantil em massa das universidades alemãs (por motivos de conflito ou de protesto) cessou subitamente após 1848 devido às mudanças no caráter acadêmico das universidades, ao aumento da idade da população estudantil, ao aburguesamento dos estudantes, que diminuiu as tensões entre eles e.a cidade assim como a turbulência estudantil, à nova instituição da franca mobilidade entre universidades, à conseqüente mudança nas associações estudantis e a outros fatores. Em todos esses casos, a inovação não se torna menos nova por ser capaz de revestir-se facilmente de um caráter de antigüidade. 

Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações simbólicas. As vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais - religião e pompa principesca, folclore e maçonaria (que, por sua vez, é uma tradição inventada mais antiga, de grande poder simbólico). Assim, o desenvolvimento do nacionalismo suíço, concomitante à formação do Estado federal moderno no século XIX, foi brilhantemente analisado por Rudolf Braun, estudioso que tem a vantagem de ser versado numa disciplina (“Volkskunde” - folclore) que se presta a esse tipo de análise, e especializado num país onde sua modernização não foi embargada pela associação com a violência nazista. As práticas tradicionais existentes - canções folclóricas, campeonatos de ginástica e de tiro ao alvo - foram modificadas, ritualizadas e institucionalizadas para servir a novos propósitos nacionais. As canções folclóricas tradicionais acrescentaram-se novas canções na mesma língua, muitas vezes compostas por mestres-escola e transferidas para um repertório coral de conteúdo patriótico-progressista (“Nation, Nation, wie voll klingt der Ton”), embora incorporando também da hinologia religiosa elementos poderosos sob o aspecto ritual (vale a pena estudar a formação destes repertórios de novas canções, especialmente os escolares). Segundo os estatutos, o objetivo do Festival Federal da Canção - isso não lembra os congressos anuais de bardos galeses? - é “desenvolver e aprimorar a canção popular, despertar sentimentos mais elevados por Deus, pela Liberdade e pela Nação, promover a união e a confraternização entre amantes da Arte e da Pátria”. (A palavra “aprimorar” indica a nota de progresso característica do século XIX.) 

Desenvolveu-se um conjunto de rituais bastante eficaz em torno destas ocasiões: pavilhões para os festivais, mastros para as bandeiras, templos para oferendas, procissões, toque de sinetas, painéis, salvas de tiros de canhão, envio de delegações do Governo aos festivais, jantares, brindes e discursos. Houve adaptações de outros elementos antigos: 

Nesta nova arquitetura dos festivais são inconfundíveis os resquícios das formas barrocas de comemoração, exibição e pompa. E como nas comemorações barrocas o Estado e a Igreja mesclavam-se num plano mais alto, surge também um amálgama de elementos religiosos e patrióticos nestas novas formas de atividade musical e física. 

Não nos cabe analisar aqui até que ponto as novas tradições podem lançar mão de velhos elementos, até que ponto elas podem ser forçadas a inventar novos acessórios ou linguagens, ou a ampliar o velho vocabulário simbólico. Naturalmente, muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos - inclusive o nacionalismo - sem antecessores tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que extrapole a continuidade histórica real seja pela lenda (Boadicéia, Vercingetórix, Armínio, o Querusco) ou pela invenção (Ossian, manuscritos medievais tchecos). Também é óbvio que símbolos e acessórios inteiramente novos foram criados como parte de movimentos e Estados nacionais, tais como o hino nacional (dos quais o britânico, feito em 1740, parece ser o mais antigo), a bandeira nacional (ainda bastante influenciada pela bandeira tricolor da Revolução Francesa, criada no período de 1790 a 1794), ou a personificação da “Nação” por meio de símbolos ou imagens oficiais, como Marianne ou Germânia, ou não-oficiais, como os estereótipos de cartum John Bull, o magro Tio Sam ianque, ou o “Michel” alemão. 

Também não devemos esquecer a ruptura da continuidade que está às vezes bem visível, mesmo nos topoi da antigüidade genuína. De acordo com Lloyd, os cânticos populares de Natal pararam de ser produzidos na Inglaterra no século XVII, sendo substituídos por hinos, como os compostos por Watts e pelos irmãos Wesley, embora haja versões populares desses hinos em religiões preponderantemente rurais, como o Metodismo Primitivo. Ainda assim, os cânticos natalinos foram o primeiro tipo de canção folclórica a ser restaurada pelos colecionadores de classe média para instalá-los “nas novas cercanias das igrejas, corporações e ligas femininas”, e daí se propagarem num novo ambiente popular urbano “através dos cantores de esquina ou dos grupos de meninos roufenhos que entoavam hinos de porta em porta, na ancestral esperança de uma recompensa”. Neste sentido, hinos como “God rest ye merry, Gentleman” (O Senhor vos dê paz e alegria) são novos, não antigos. Tal ruptura é visível mesmo em movimentos que deliberadamente se denominam “tradicionalistas” e que atraem grupos considerados por unanimidade repositórios da continuidade histórica e da tradição, tais como os camponeses. Aliás, o próprio aparecimento de movimentos que defendem a restauração das tradições, sejam eles “tradicionalistas” ou não, já indica essa ruptura. Tais movimentos, comuns entre os intelectuais desde a época romântica, nunca poderão desenvolver, nem preservar um passado vivo (a não ser, talvez, criando refúgios naturais humanos para aspectos isolados na vida arcaica); estão destinados a se transformarem em “tradições inventadas”. Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não deve ser confundida com a “invenção de tradições”. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam. 

Ainda assim, pode ser que muitas vezes se inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são usados, nem adaptados. Assim, ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor das inovações radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas. O êxito alcançado pelos donos de fábricas Tories em Lancashire (ao contrário do que aconteceu com os Liberais), depois de terem utilizado esses velhos vínculos em seu proveito, mostra que eles ainda existiam e podiam ser ativados - mesmo num ambiente sem precedentes do distrito industrial. Não se pode negar que os costumes pré-industriais não são adaptáveis a longo prazo a uma sociedade que tenha passado por um determinado grau de revolução. Mas esta inadaptabilidade não pode ser confundida com os problemas resultantes da rejeição dos velhos costumes a curto prazo por parte daqueles que os encaram como obstáculos ao progresso ou, o que ainda é pior, como inimigos ativos. 

Isto não impediu que os inovadores inventassem suas próprias tradições - por exemplo, as práticas da maçonaria. No entanto, em virtude da hostilidade geral contra o irracionalismo, as superstições e as práticas de costume reminiscentes das trevas do passado, e possivelmente até provenientes deles, aqueles que acreditavam fervorosamente nas verdades do Iluminismo, tais como liberais, socialistas e comunistas, abominavam tanto as velhas tradições quanto as novas. Os socialistas, como veremos adiante, ganharam um 14 de Maio anual sem saberem bem como; os nacional-socialistas exploravam tais ocasiões com um zelo e sofisticação litúrgicos e uma manipulação consciente dos símbolos. Durante a era liberal na Inglaterra tais práticas foram quando muito toleradas, na medida em que nem a ideologia, nem a produção econômica estavam em jogo, considerando-se isso uma concessão relutante ao irracionalismo das ordens inferiores. As atividades sociáveis e rituais das sociedades de ajuda mútua eram encaradas ao mesmo tempo com hostilidade (“despesas desnecessárias”, tais como “gastos com festas de aniversário, desfiles, fanfarras e adereços”, eram proibidas por lei) e com tolerância pelos liberais no que dizia respeito aos banquetes anuais, pelo fato de que “a importância desta atração, especialmente em relação à população rural, não pode ser negada”. Entretanto vigorava um rigoroso racionalismo individualista, não só como base de cálculos econômicos, mas também como ideal social. No Capítulo 7 estudaremos o que aconteceu no período em que as limitações deste racionalismo foram se tornando cada vez mais evidentes. 

Podemos concluir esta introdução com algumas observações gerais sobre as tradições inventadas desde a Revolução Industrial. 



Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: 

a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; 

b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e 

c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento. 



Embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido certamente inventadas (como as que simbolizam a submissão à autoridade na Índia britânica), pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais como a “nação”. 

Uma das dificuldades foi que estas entidades sociais maiores simplesmente não eram Gemeinschaften, nem sistemas de castas. Em virtude da mobilidade social, dos conflitos de classe e da ideologia dominante, tornou-se difícil aplicar universalmente as tradições que uniam comunidades e desigualdades visíveis em hierarquias formais (como é o caso do Exército). Isto não afetou muito as tradições do tipo c), uma vez que a socialização geral inculcava os mesmos valores em todos os cidadãos, membros da nação e súditos da Coroa, e as socializações funcionalmente específicas dos diferentes grupos sociais (tais como a dos alunos de escolas particulares, em contraste com a dos outros) geralmente não sofriam interferências mútuas. Por outro lado, na medida em que as tradições inventadas como que reintroduziam o status no mundo do contrato social, o superior e o inferior num mundo de iguais perante a lei, não poderiam agir abertamente. Poderiam ser introduzidas clandestinamente por meio de uma aquiescência formal e simbólica a uma organização social que era desigual de fato, como no caso da reconstituição da cerimônia de coroação britânica (veja, adiante, p. 290). Era mais comum que elas incentivassem o sentido coletivo de superioridade das elites - especialmente quando estas precisavam ser recrutadas entre aqueles que não possuíam este sentido por nascimento ou por atribuição - ao invés de inculcarem um sentido de obediência nos inferiores. Encorajavam-se alguns a se sentirem mais iguais do que outros, o que podia ser feito igualando-se as elites a grupos dominantes ou autoridades pré-burguesas, seja no modelo militarista/burocrático característico da Alemanha (caso dos grêmios estudantis rivais), seja em modelos não militarizados, tipo “aristocracia moralizada”, como o vigente nas escolas secundárias particulares britânicas. Por outro lado, talvez, o espírito de equipe, a auto-confiança e a liderança das elites podiam ser desenvolvidos por meio de “tradições” mais esotéricas, que manifestassem a coesão de um mandarinado superior oficial (como ocorreu na França ou nas comunidades brancas nas colônias). 

Uma vez estabelecida a preponderância das tradições inventadas “comunitárias”, resta-nos investigar qual seria sua natureza. Com o auxílio da antropologia, poderemos elucidar as diferenças que porventura existam entre as práticas inventadas e os velhos costumes tradicionais. Aqui só poderemos observar que, embora os ritos de passagem sejam normalmente marcados nas tradições de grupos isolados (iniciação, promoção, afastamento e morte), isso nem sempre aconteceu com aqueles criados para pseudocomunidades globalizantes (como as nações e os países), provavelmente porque estas comunidades enfatizavam seu caráter eterno e imutável - pelo menos, desde a fundação da comunidade. No entanto, os novos regimes políticos e movimentos inovadores podiam encontrar equivalentes seus para os ritos tradicionais de passagem associados à religião (casamento civil e funerais). 

Pode-se observar uma nítida diferença entre as práticas antigas e as inventadas. As primeiras eram práticas sociais específicas e altamente coercivas, enquanto as últimas tendiam a ser bastante gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e obrigações que procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo: “patriotismo”, “lealdade”, “dever”, “as regras do jogo”, “o espírito escolar”, e assim por diante. Porém, embora o conteúdo do patriotismo britânico ou norte-americano fosse evidentemente mal definido, mesmo que geralmente especificado em comentários associados a ocasiões rituais, as práticas que o simbolizavam eram praticamente compulsórias - como, por exemplo, o levantar-se para cantar o hino nacional na Grã-Bretanha, o hasteamento da bandeira nas escolas norte-americanas. Parece que o elemento crucial foi a invenção de sinais de associação a uma agremiação que continham toda uma carga simbólica e emocional, ao invés da criação de estatutos e do estabelecimento de objetivos da associação. A importância destes sinais residia justamente em sua universalidade indefinida: 

A Bandeira Nacional, o Hino Nacional e as Armas Nacionais são os três símbolos através dós quais um país independente proclama sua identidade e soberania. Por isso, eles fazem jus a um respeito e a uma lealdade imediata. Em si já revelam todo o passado, pensamento e toda a cultura de uma nação. 

Neste sentido, conforme escreveu um observador em 1880, “os soldados e policiais agora usam emblemas por nós”; embora ele não previsse sua restauração como complemento de cidadãos individuais na era dos movimentos de massa, que estava prestes a começar. 

Podemos também observar que, obviamente, apesar de todas as invenções, as novas tradições não preencheram mais do que uma pequena parte do espaço cedido pela decadência secular das velhas tradições e antigos costumes; aliás, isso já poderia ser esperado em sociedades nas quais o passado torna-se cada vez menos importante como modelo ou precedente para a maioria das formas de comportamento humano. Mesmo as tradições inventadas dos séculos XIX e XX ocupavam ou ocupam um espaço muito menor nas vidas particulares da maioria das pessoas e nas vidas autônomas de pequenos grupos subculturais do que as velhas tradições ocupam na vida das sociedades agrárias, por exemplo. “Aquilo que se deve fazer” determina os dias, as estações, os ciclos biológicos dos homens e mulheres do século XX muito menos do que determinava as fases correspondentes para seus ancestrais, e muito menos do que os impulsos externos da economia, tecnologia, do aparelho burocrático estatal, das decisões políticas e de outras forças que não dependem da tradição a que nos referimos, nem a desenvolvem. 

Contudo, tal generalização não se aplica ao campo do que poderia ser denominado a vida pública dos cidadãos (incluindo até certo ponto formas públicas de socialização, tais como as escolas, em oposição às formas particulares, como os meios de comunicação). Não há nenhum sinal real de enfraquecimento nas práticas neo-tradicionais associadas ou com corporações de serviço público (Forças Armadas, a justiça,. talvez até o funcionalismo público) ou com a cidadania. Aliás, a maioria das ocasiões em que as pessoas tomam consciência da cidadania como tal permanecem associadas a símbolos e práticas semi-rituais (por exemplo, as eleições), que em sua maior parte são historicamente originais e livremente inventadas: bandeiras, imagens, cerimônias e músicas. Na medida em que as tradições inventadas da era que sucedeu às revoluções Francesa e industrial preencheram uma lacuna permanente - pelo menos, até hoje - parece que isso ocorreu neste campo. 

Ora, pode-se afinal perguntar, será que os historiadores devem dedicar-se a estudar estes fenômenos? A pergunta é, de certo modo, desnecessária, já que cada vez mais estudiosos claramente se ocupam deles, como se pode comprovar pelo conteúdo deste volume e pelas referências nele incluídas. É melhor refazer a questão: o que os historiadores ganham com o estudo da invenção das tradições? 

Antes de mais nada, pode-se dizer que as tradições inventadas são sintomas importantes e, portanto, indicadores de problemas que de outra forma poderiam não ser detectados nem localizados no tempo. Elas são indícios. Pode-se elucidar melhor como o antigo nacionalismo liberal alemão assumiu sua nova forma imperialista-expansionista observando-se a rápida substituição das antigas cores preta, branca e dourada pelas novas cores preta, branca e vermelha (principalmente na década de 1890) no movimento da ginástica alemã, do que estudando-se as declarações oficiais de autoridades ou porta-vozes. Pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana operária que não se conseguiram através de fontes mais convencionais. Por sinal, o estudo das tradições inventadas não pode ser separado do contexto mais amplo da história da sociedade, e só avançará além da simples descoberta destas práticas se estiver integrado a um estudo mais amplo. 

Em segundo lugar o estudo dessas tradições esclarece bastante as relações humanas com o passado e, por conseguinte, o próprio assunto e ofício do historiador. Isso porque toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal. Muitas vezes, ela se torna o próprio símbolo de conflito, como no caso das lutas por causa dos monumentos em honra a Walther von der Vogelweide e a Dante, no sul do Tirol, em 1889 e 1896. Até mesmo os movimentos revolucionários baseavam suas inovações em referências ao “passado de um povo” (sazões contra normandos, “nos ancêtres les Gaulois” contra os francos, Espártaco), a tradições de revolução (“O povo alemão também tem suas tradições revolucionárias”, afirma Engels no início de seu livro A guerra dos camponeses alemães) e a seus próprios heróis e mártires. No livro de James Connolly, Labour in Irish History (O operariado na história da Irlanda), há excelentes exemplos desta conjugação de temas. O elemento de invenção é particularmente nítido neste caso, já que a história que se tornou parte do cabedal de conhecimento ou ideologia da nação, Estado ou movimento não corresponde ao que foi realmente conservado na memória popular, mas àquilo que foi selecionado, escrito, descrito, popularizado e institucionalizado por quem estava encarregado de fazê-lo. Os historiadores que trabalham com informações orais observaram freqüentemente que a Greve Geral de 1926 teve nas memórias das pessoas idosas um efeito mais modesto e menos impressionante do que o esperado pelos entrevistadores. Analisou-se a formação de uma imagem semelhante da Revolução Francesa durante a Terceira República. Todavia, todos os historiadores, sejam quais forem seus objetivos, estão envolvidos neste processo, uma vez que eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mundo da investigação especializada, mas também à esfera pública onde o homem atua como ser político. Eles devem estar atentos a esta dimensão de suas atividades. 

A propósito, deve-se destacar um interesse específico que as “tradições inventadas” podem ter, de um modo ou de outro, para os estudiosos da história moderna e contemporânea. Elas são altamente aplicáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente recente, a “nação”, e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas, e daí por diante. Todos estes elementos baseiam-se em exercícios de engenharia social muitas vezes deliberados e sempre inovadores, pelo menos porque a originalidade histórica implica inovação. O nacionalismo e as nações israelita e palestina devem ser novos, seja qual for a continuidade histórica dos judeus ou dos muçulmanos do Oriente Médio, uma vez que naquela região há um século atrás não se cogitava nem no conceito de Estado territorial do tipo padronizado atual, que só veio a tornar-se uma probabilidade séria após a I Guerra. As linguagens-padrão nacionais, que devem ser aprendidas nas escolas e utilizadas na escrita, quanto mais na fala, por uma elite de dimensões irrisórias, são, em grande parte, construções relativamente recentes. Conforme observou um historiador francês especializado no idioma flamengo, o flamengo ensinado hoje na Bélgica não é a língua com que as mães e avós de Flandres se dirigiam às crianças: em suma, é uma “língua materna” apenas metaforicamente, não no sentido literal. Não nos devemos deixar enganar por um paradoxo curioso, embora compreensível: as nações modernas, com toda a sua parafernália, geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou seja estar enraizadas na mais remota antigüidade, e o oposto do construído, ou seja, ser comunidades humanas, “naturais” o bastante para não necessitarem de definições que não a defesa dos próprios interesses. Sejam quais forem as continuidades históricas ou não envolvidas no conceito moderno da “França” e dos “franceses” - que ninguém procuraria negar - estes mesmos conceitos devem incluir um componente construído ou “inventado”. E é exatamente porque grande parte dos constituintes subjetivos da “nação” moderna consiste de tais construções, estando associada a símbolos adequados e, em geral, bastante recentes ou a um discurso elaborado a propósito (tal como o da “história nacional”), que o fenômeno nacional não pode ser adequadamente investigado sem dar-se a atenção devida à “invenção das tradições”. 

Finalmente, o estudo da invenção das tradições é interdisciplinar. E um campo comum a historiadores, antropólogos sociais e vários outros estudiosos das ciências humanas, e que não pode ser adequadamente investigado sem tal colaboração. A presente obra reúne, fundamentalmente, contribuições de historiadores. Espera-se que outros venham também a considerá-la útil.